NICO NÃO É SÓ COISA DE MÚSICA – por Danyel Guerra

“Sua voz soa como um computador
da IBM com sotaque à Greta Garbo ”

  Andy Warhol

O hagiológico percurso musical de Nico (aka Christa Päffgen), tende a ser, de imediato,  reconhecido por quem tenha “dois dedos de ouvido”. Sendo assim, não soará a descabido sugerir que deve fazer parte da nossa cultura geral esta sabedoria:  Nico está no epicentro de um dos discos mais cruciais da história do rock concebido como arte. Sua discografia se afirma como um patrimônio respeitável e respeitado mesmo por aqueles que não perfilham seu estilo.

Numa “camera obscura”

Em contramão, os cometimentos cinematográficos continuam obnubilados, envoltos nas névoas da ignorância e da desconsideração.  Parafraseando o nome do derradeiro álbum de estúdio (de 1985),  a memória das atuações da ‘Femme Fatale’ nas cinetelas oculta-se  numa “camera obscura”. Performances  que ao terceiro filme se viram iluminadas com dolcezza  pela energia vital de um  prodigioso cineartista. A fascinante invenção do diretor riminiano espalhou o talismã de pedras auspiciosas no trajeto da novel atriz.

Seria raciocínio especulativo deduzir que Fräulein Päffgen passou a ser uma mulher mais felliz. Em contrapartida, pode-se garantir que a artista se nutriu de uma têmpera mais fellina.

 Dolce Vita com Mastroianni…  

A  sétima década do século XX estava esboçando o primeiro vagido. Uma fashion model , batizada à nascença com água de Colônia, precisou de pouco mais que o tempo da música ‘These Days’ , para iniciar o processo de canonização enquanto efígie dourada do universo contracultural alternativo, que triangulou em frenesi, sexo, drogas & rock’n’roll.

Ciente, desde a adolescência, do seu potencial fotogênico,  a nascida admirando a Kölner Dom, decidiu afirmar ainda teenager   uma personalidade apta a superar o prosaico estatuto de uma maneca. Declinou ser mais um modelo limitado a exibir em fotos e ensaios de revista, efêmera rouparia.

Sua epifania começou a revelar-se num filme tão  sagrado quanto profano. Era notte a Roma. Porém, não propriamente a notte romana de Roberto Rossellini, antes a notte romana de Federico Fellini. No torvelinho de uma notte (f)estival, tépida quase cálida, com muita  animação, intensa falação, sensual azaração, o repórter Marcello Rubini(Marcello Mastroiani) vê-se interpelado pela teofania inesperada de um manequim muito em vogue. O diálogo não dura sequer um minuto, mas o bad boy  tem tempo para, além de saudar, paquerar a lourinha.

A ideia de convidar a manequinha  a visitar o set, em plena Cinecittà, partiu do regista. No ensejo, ele a desafiou a fazer uma ponta na sua oitava longa-metragem, sem direito a crédito. O realizador de ‘Le Notti di Cabiria’ (1957) sabia que a moça não era uma maruja de primeira viagem nos mares da sétima arte. Embora, não passasse de uma absolute  beginner .

No ano anterior, sem crédito nos letreiros, ela tirocinara, exibindo la ragazza bionda do Festival da Primavera em  ‘La Tempesta’, de Alberto Lattuada, estrelado pela diva Silvana Mangano. No mesmo ano, em ‘For de First Time’, de novo sem crédito na ficha artística, a neófita fazia-se ouvir como a líder dos fãs em Capri, do cantor Tonio Costa (Mario Lanza). Um drama musical dirigido por Rudolph Maté. Mediano cineasta, Maté destacou-se-se como exímio fotógrafo (vide ‘La Passion de Jeanne D’Arc’, de Carl Dreyer).

Passados quase 70 anos, tem o seu quê de surpreendente verificar uma aparente contradição. Apesar do prestígio da aparição cameo  na magnum opus de Fellini, o estatuto da Nico atriz não decolou. Recorde-se, bem a propósito, que, em finais da década de 50, a tedesca decidira se mudara de Paris para New York, a fim de frequentar a academia de Lee Strasberg.  As duas produções em cujo elenco esteve incluída não abonam quase nada em favor do desiderato de progredir na arte da representação sob a tutela do Método ‘Actor’ s Studio’.. Malgrado essa aposta, a cantora iria “conspirar” contra a atriz.

…e Strip-Tease com Gainsbourg

Em 1961, quem assistiu ao thriller policial ‘Un nommé la Rocca’, de Jean Becker (filho de Jacques Becker), pode apenas admirá-la no curto papel de uma sunbathing model.  Mais ampla densidade dramática denota ter sua Ariane, a personagem principal de ‘Strip-Tease’, 1963, de Jacques Poitrenaud. Alegando ter dívidas a quitar,  uma bailarina alemã abandona sua trupe e decide trabalhar como strip-teaseuse num cabaret parisiense. Pese embora seja um registro pejado das convenções que a nouvelle vague adorava surrar, ‘Strip-Tease’ se tornou um filme de culto. Não somente devido ao protagonismo de Krista Nico –assim foi creditada-, mas também por mérito da atuação de Serge Gainsbourg enquanto pianista da boîte e autor da trilha sonora. Ambos harmonizaram talentos no title track da fita. Nico interpreta a composição de Gainsbourg, na sua primeira gravação fonográfica.

Na Factory of Dreams

Meada a década, a ‘Little Sister’ decide radicar-se na Big Apple, ainda ignorando que, em breve, degustaria uma Big Banana. Suspeito não ter sido num ‘Sunday Morning’ que  a predestinada ‘Heroin’ foi apresentada a Andy Warhol  pelo  “stone” Brian Jones, que conhecera em Londres. Num tempo breve, começou a interagir com um mago popista  seduzido pelos  seus dons ambivalentes. E não essencialmente por ser senhora de um físico prodigioso, como poderia observar Jorge de Sena. Nico não demoraria a ser aceita e eleita como uma das musas da Factory, estúdio onde gravitavam as Warhol Superstars.

Andy tinha conhecimento da sua fugaz, todavia, impressiva participação em ‘La Dolce Vita’. A esbelta, insinuante teutônica nem precisaria drapejar o CV para encantar no ecrã antes de cantar no vinil.

Numa tão lógica quanto natural consequência, Nico se viu escalada para atuar nos radicais cinexperimentos que Warhol tinha em ponto de bala. Nico começa por se destacar no cast de ‘The Closet’ (1966). Seguem-se participações em ‘Sunset’ (1967) e em ‘Imitation of Christ’ (1967) . Ao lado de Brigid Berlin, lidera o elenco de ‘Chelsea Girls’ (1966), o mais audaz e fraturante produto do ateliê warholiano. numa codireção com Paul Morrissey.

A cantatriz está sob a luz dos spotlights em ‘The Velvet Underground and Nico: A Symphony of  Sound’ ( 1966). O doc flagra e retrata um ensaio da banda apadrinhada pelo todo poderoso.  A 12 de março de 1967, a cabeça da vocalista começa a ungir-se com os óleos da sagração. O álbum vislumbra, por bom fim, os raios de um sol ainda invernoso. O (en)canto da patativa refulge como um dos trunfos do LP  deste projeto de art rock experimental, com laivos psicodélicos.

Na sequência das boas sensações do “disco da banana”, a Chelsea Girl rumou para uma lisérgica carreira a solo. A atriz não ficaria muito tempo inerte.  A década de todas as mirabolâncias, afogueada pelo verão do amor livre d irrestrito, terminará em apogeu de consagração nos palcos e em anúncios de regresso aos sets. Em 1969, a cantautora encetou, ainda que fora do plateau, o terceiro segmento cinexistencial, iniciando uma parceria com Philippe Garrel. O diretor francês era um epígono da Nouvelle Vague, fautor de um cinema autoral, independente, singularmente pessoal. Garrel conheceu Nico ao vivo quando a música ‘The Faloner’ integrou a trilha sonora de  Le lit de la Vierge’ (1969). A relação cinemamorosa acentuou-se nos anos 70, expressa na atuação de Nico nos filmes ‘La Cicatrice Intérieure’ (1972) – com música sua-, na curta ’Athanor’ (1972), ‘Les Hautes Soliitudes’ (1974- ao lado de Jean Seberg-,  ‘Un Ange Passe’ (1975), ‘Le Berceau de Cristal’ (1976), ‘Voyage au Jardin des Morts’ (1978). Num tocante testemunho de seu apreço e afeto, Garrel dedicou-lhe ‘J’entends plus la Guitarre’(1991). Nico havia falecida tragicamente em Ibiza, no verão de 1988. Ambos estiveram solidariamente agarrados ao longo do plenilúnio do realizador parisiense. Uma cintilante lua cheia de mel.

Três minutos sob às “luci del varietà”

Se a germânica não se tivesse tornado uma heroína do pop rock alternativo, um símbolo da contracultura musical teria eu escrito este singelo tributo afetuoso à atriz? Com certeza que sim. Tende a ser pacífico reconhecer que nos seus feitos e defeitos, as prestações nos ecrãs não devem ser sobrestimadas. No mesmo passo, será judicioso defender que não podem ser subestimadas. No filme da sua existência  temporal, a cantautora desempenha o papel  principal, enquanto a atriz interpreta o papel  coadjuvante. Se nos estúdios e palcos foi uma épica protagonista, nos sets e ecrãs, ela não foi mais uma obscura figurante.

Para memória futura impõe-se sublinhar ter a nossa diva atuado sob a batuta de três maestros (Fellini, Warhol e Garrel) que, consideradas sua diversidade estilística e diferenças estéticas, amam a sétima arte acima de todas as coisas mundanas. E a Christa (ungida)  ergueu-se no proscênio desse cinemamor. Ter estado uns três minutos sob as “luci del varietà” de um fellino filme não é pouca coisa de cinema. Esse privilégio insinua-se como argumento suficiente para justificar uma longa posteridade, após uma vida recheada de sensações tão dulcíssimass como banana split e tão amaríssimas como limão ou jiló.

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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É o colaborador mais regular da Revista Athena.