INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE CULTURA
Apresentarei aqui os traços mais essenciais do conceito de Cultura que estive amadurecendo ao longo dos últimos 20 anos, porém desta vez sem fazer maiores referências às concepções tradicionais de cultura que são conhecidas de toda gente. O texto também será aligeirado das habituais referências acadêmicas e da análise de uma noção crucial, a noção de problema, à qual dedicarei um ensaio à parte. Por uma questão de clareza, a palavra cultura será grafada com inicial maiúscula sempre que referir-se ao conceito que estou desenvolvendo, o que não significa, obviamente, que eu esteja sugerindo a existência de uma hierarquia entre ele e os demais conceitos de cultura.
- DEFINIÇÃO DE CULTURA
Cultura é a ação do homem sobre o homem para produzir o homem. A ação do homem sobre si mesmo para produzir a si mesmo é um caso particular da ação do homem sobre o homem; assim, a autoprodução do homem está (necessariamente) implicada na definição de Cultura.
A definição acima corresponde à minha primeira formulação do conceito. Apesar de suas limitações, ela ainda é adequada e eu continuo usando-a como uma primeira aproximação ao conceito de Cultura, pois é simples e didática; também me sirvo dela quando quero referir-me, de maneira específica, aos seres humanos. Em ambos os casos, contudo, sei que estou usando uma definição deliberadamente restritiva. A Cultura não deve ser circunscrita à realidade humana, pois, a rigor, ela é coextensiva à vida.
Cultura é a ação do vivo sobre o vivo para produzir o vivo. Esse alargamento da extensão do conceito de Cultura afeta sua compreensão em pelo menos um aspecto essencial: ele permite perceber que a ação sobre si mesmo não é um simples “caso particular” da Cultura, como sugerido inicialmente, mas seu modelo primordial e irredutível. O metabolismo de uma célula nada mais é do que a integração de ações bioquímicas coordenadas entre si por meio das quais a célula produz a si mesma como sistema relativamente fechado. A forma mais primitiva de reprodução, por sua vez, a reprodução assexuada, exprime a ação da célula sobre si mesma para dividir-se e transformar-se em duas células.
Organismos unicelulares e reprodução assexuada contam a história da vida na Terra durante aproximadamente dois bilhões de anos. Foi somente em seguida que os seres vivos começaram a formar colônias, organismos pluricelulares, bandos, matilhas, tribos e sociedades. Mas se há uma continuidade de vida que se confunde com os caminhos por ela percorridos, da primeira célula até a história das civilizações, um de seus conceitos-chave é o conceito de Cultura, entendida, em primeiro lugar, como autoprodução.
- O PAPEL DO OUTRO NA PRODUÇÃO DE SI
A produção de si depende necessariamente do outro. A autofagia, forma primordial da reciclagem, é importante e rotineira, mas é fora de si, na matéria ou em outros seres vivos, que o vivo busca a energia e os nutrientes necessários à manutenção de seu metabolismo. A percepção de si é importante e rotineira, mas é fora de si que o vivo busca as informações que lhe permitem agir no mundo de forma eficaz. Embora os seres vivos constituam, desde o início da vida, unidades autônomas, separadas umas das outras e do meio ambiente por membranas, eles jamais se fecham inteiramente em si mesmos. É por isso que eles constituem sistemas relativamente fechados: porque viver implica necessariamente uma abertura para o fora.
A mera transmissão do ADN de um ser vivo a outro já exprime, por si mesma, o movimento da Cultura: ao passar adiante seu material genético, o vivo transmite todas as instruções e capacidades que conhece e ensina a seus descendentes um modo de vida, ou seja, a maneira característica pela qual aquela espécie resolve os problemas da existência. Mas ao passo que um unicelular recebe em bloco e de uma só vez as informações necessárias para seguir produzindo a si mesmo, os membros da espécie humana caracterizam-se por um tempo consideravelmente longo de formação e maturação. Um arranjo evolucionário desse tipo demanda um esforço contínuo e prolongado, o que torna a ação do outro especialmente relevante. A criança humana terá de ser alimentada durante bastante tempo; além disso, em seus primeiros anos de vida, ela terá de escutar a fala do outro, pois depende dessa escuta para adquirir a linguagem. A essa competência linguística fundamental somam-se várias outras competências que a criança terá de desenvolver até estar preparada para a vida adulta. Obviamente, nenhuma criança produz a si mesma alimentando-se com “comida em geral” ou aprendendo a “linguagem em geral” com um “homem em geral”; ela é alimentada e educada por homens e mulheres singulares que pertencem a culturas (no sentido antropológico do termo) não menos singulares. Assim, a Cultura, ação do homem sobre o homem para produzir o homem, é sempre exercida no contexto de uma ou mais culturas.
Ser criado nesta ou naquela cultura em particular é da ordem da contingência, mas dar ouvidos ao outro é da ordem do necessário e do universal. Seja qual for o contexto cultural em que uma criança é educada, é sempre dando ouvidos ao outro que ela se produz como membro da espécie humana.
- A PRODUÇÃO DE SI AFETA A PRODUÇÃO DO OUTRO
A relação entre um agente e um paciente — a ação direta de um homem sobre outro — afeta o homem que padece, mas também o homem que age. Luvas de boxe protegem o rosto, mas também (e principalmente) as mãos dos lutadores. No ato mesmo de ensinar, um professor também pode aprender, seja em razão do feedback de seus alunos, seja pela auspiciosa disposição de repensar, a cada aula, os tópicos que leciona. Um cirurgião ganha experiência a cada operação que executa.
Inversamente, um homem não afeta apenas a si mesmo ao produzir-se desta ou daquela maneira; ele também afetará, em função da diferença que introduziu no mundo, a autoprodução de outros homens. O homem que aprende um ofício adquire (para si mesmo) uma competência que lhe permitirá ganhar a vida, mas simultaneamente enriquece seu entorno aumentando (para os demais) a oferta de um bem ou de um serviço. O homem que se faz místico, filósofo ou artista proporcionará aos demais novas experiências e novas maneiras de sentir e de pensar. A autoprodução de um homem é, ao mesmo tempo, uma ação atual sobre si mesmo e uma ação virtual sobre os demais homens.
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O conceito de Cultura proposto aqui é puramente descritivo e possui um alto grau de universalidade: ele não se aplica apenas ao Homem, mas também a todos os seres vivos, mesmo os mais rudimentares. Seria possível ampliar ainda mais sua extensão e dizer que a molécula age sobre a molécula para produzir a célula, ou mesmo que a partícula age sobre a partícula para produzir o átomo? Eu não iria tão longe, particularmente no último caso, preferindo confessar minha ignorância e manter um prudente silêncio. Em compensação, tenho a tranquila convicção de que o conceito de Cultura aplicar-se-á igualmente aos marcianos e aos super-homens caso venhamos, um dia, a descobrir sua existência.
Pretendo testar, ao longo dos anos que me restam, o alcance especulativo do conceito de Cultura; ainda não é hora, porém, de falar desses inevitáveis confrontos teóricos. Seja como for, é possível que a importância prática do conceito de Cultura seja maior do que sua relevância especulativa. Quando compreendo que, fazendo seja lá o que for, estou produzindo a mim mesmo, e compreendo que minha autoprodução afeta os outros homens (e, no limite, todos os outros seres vivos), sou levado a sentir-me responsável: por mim, em primeiríssimo lugar, mas também pelo outro. Assim, o conceito de Cultura termina por fornecer um fundamento extra-moral (descritivo, e não normativo) ao problema moral, e sua mera exposição contribui para fomentar a reflexão ética.
Por fim, há um problema célebre que, a meu ver, o conceito de Cultura permite solucionar em definitivo: o problema do sentido da vida. Ao produzir-se deste ou daquele modo o vivo produz, ao mesmo tempo, o sentido de sua vida. Essa visão está longe de ser inédita; Bergson já afirmava que o sentido da vida é a criação de si. Mas a ausência de ineditismo não é, necessariamente, um mau sinal; parece-me, ao contrário, que ter chegado a um resultado similar percorrendo um caminho inteiramente diverso apenas confirma a acuidade dessa visão. Cada vivente é um lance de dados no qual toda a Vida está implicada, e cada qual explica a Vida de maneira singular ao inventar a si mesmo, isto é, ao solucionar à sua própria maneira o problema da existência.
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Francisco Traverso Fuchs foi aluno de Cláudio Ulpiano e traduziu o livro As Leis Sociais, de Gabriel Tarde. É mestre em Filosofia pela UFRJ e atua como pesquisador independente. Seus conceitos-chave são a Cultura, o Problema e o Risco. Atualmente esforça-se para pensar a Cultura como Natureza e a Natureza como Cultura.
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