A DEMOCRATURA – por Fernando Martinho Guimarães

O séc. XVIII é, costuma dizer-se, o século das Luzes, do Iluminismo.

Os seus representantes máximos, Kant, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, entre outros, têm em comum a afirmação da razão como critério e ideal da universalidade dos princípios que resultariam do seu exercício.

Não é de admirar que os ideais da ciência e do progresso sejam a pedra de toque que promoveriam o desenvolvimento efectivo da humanidade e não apenas deste ou daquele povo, desta ou daquela nação.

O progresso, científico e social, adviriam, pois, do debate esclarecido, ilustrado, de ideias, do confronto, decente e civilizado, de diferentes pontos de vista acerca do mundo que se quer construir, para nós e para os que, depois de nós, hão-de vir.

A segunda metado do século XX, no seguimento das experiências traumáticas das duas guerras mundiais, parecia consolidar o que de melhor o Iluminismo nos tinha deixado. Não espanta que as democracias se tenham imposto como a forma desejável de, social e politicamente, promover os ideais iluministas.

No entanto, de há uns tempos para cá, as coisas parecem estar a mudar. No campo da ciência, proliferam os defensores da teoria da terra plana e do criacionismo. A contestação às vacinas e aos antibióticos, por exemplo, tem nas redes sociais um palco privilegiado. O mercado dos suplementos alimentares e de outras mezinhas ditas da medicina alternativa ocupa boa parte dos espaços televisivos. A negação das alterações climáticas já não é apenas conversa de café e foi assumida como política oficial de alguns Estados.

No campo do jogo político internacional regressou em força a defesa intransigente dos nacionalismos. O que é nosso é, já se sabe, melhor do que o que não é nosso, pela simples razão de que é nosso. O debate democrático das ideias perde força e significado porque os pontos de vista em confronto não se vêm como adversários, mas antes como inimigos. Deste modo, o poder do argumento desaparece dando lugar ao espectáculo das afirmações meramente proclamatórias.

As democracias parecem, assim, estarem a perder o pé e a enfraqueceram a olhos vistos. Assistimos, por esse mundo fora, à escolha eleitoral dos chamados «homens fortes», truculentos e fanfarrões. Da Turquia aos Estados Unidos da América, da Hungria à Venezuela, da Ucrânia à Argentina, de Israel à Rússia, os povos escolhem entusiasticamente líderes cuja mensagem principal é o argumento da força e a afirmação sectária de que a grandeza dos seus países é mais grande do que a grandeza dos países vizinhos.

É claro que ninguém sabe o que isto quer dizer, embora todos saibam que daí nada de bom resultará.

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.