UMA NUANCE NAS NÓDOAS V – por Lúcio Valium

 

NOITE

lua de creme em jangada de cobertor azul

CADEIRA

A instituição está quase deserta. Foram ao passeio anual. Aqui permaneceram poucos. Alguns não integram. Desprezam convenções e enquadramentos. Líderes específicos e ondas bíblicas. O arejado silêncio nos corredores e nas áreas comuns é o melhor dos medicamentos. Está fresco e parece haver uma metafísica sonâmbula invertida. Como se os que ficaram estivessem a voar quietos. Num recolhimento cósmico. Só a palavra indispensável é proferida. Todas as partes do grande edifício assumem outra identidade. Os olhares veem, destacando as linhas dos momentos. Tomo um comprimido para as dores estruturantes. Caminho sem ir a lado nenhum. Posso ler as folhas que vou amontoando nos bolsos do casaco. Tenho outra cadeira para a hospedaria. Foi oferecida. É boa madeira e ajuda as peças vertebrais a ficarem mais ordenadas. Ontem o mar e a luz do fim do sol, davam à tua pele um tom de fogo. E a risca negra sobre as pálpebras fazia o belo com a rebeldia das águas. Há pouco chamaram-me para um compartimento onde estava o do 24. Anda muito devagar. Tinha passado por mim no bar. Parou para me dizer que tem ouvido uns sons na cabeça. Como um rádio sem sintonia. E que também tem sentido um paladar estranho na boca. Será de estar a ler Lautréamont, perguntou-me. Evidentemente, respondi. Mude de leitura, aconselhei. Agradeceu e disse que ia fazê-lo. Mais tarde quando entro no compartimento o do 24 come uma banana e fuma. O delegado espreita pela janela. Depois vira-se e olha-nos. Queria falar-vos do passeio, diz. Recusa da asfixia, responde o do 24 antes da pergunta. E sai. O chão acolhe afável o olhar do delegado.

Fotografia de José Boldt

NEUROLOGIAS

Ainda não sei se vou mudar de instituição. As ressonâncias magnéticas têm o segredo da minha nova morada. Entretanto o do 24 anda a aprender uma língua mas não me diz qual. E há algo estranho nele. Talvez imagine que me vou embora e não deseje aprofundar a intimidade. Há dois dias que escuta a mesma música. Convocam-me para uma consulta de lavagem neuronal. Não fui. Agora vão dar-me duas injeções. O do 24 diz-me que logo à noite vai sair. Para ir ao cinema. Mas não revela o nome do filme. Ao despedir-se diz-me que só a poesia viva me pode curar as mialgias encefálicas e o deplorável estado límbico. Abraço-o e olho-o. Tem uma expressão forte. Confiante. Os traços da face parecem mostrar um vigor pouco habitual. O que usou em todas as lutas, penso. Abana a cabeça afirmativamente e deixa-me ali.

TRANSFUSÕES

Já não consto dos ficheiros. Em lugar do meu nome, um número. Indicam-me uma instituição mais a norte. Numa pequena cidade verde. Onde reina a serenidade e o silêncio balsâmicos. Pretendem saber o que é melhor para mim. Sou um dado nos seus programas. Mandam-me sem auscultarem o teor emotivo e a pulsação melancólica. Sem palavra sobre alterações medicamentosas. Ao menos podiam propor tratamento alternativo. Coisas ligadas às artes como agora há. Ou à equitação. Por exemplo introspeção aquática. Ampolas sónicas. Ou outras eloquentes abordagens do tempo. Mas sei-o bem meninos a vossa engenharia já não permite a intromissão de pensamentos com cheiro àquilo que se chama humano. É tudo uma questão de higiene irão retorquir. Fazemos uma nova era com sua lógica de pureza. Libertamos uma energia limpa. Vivemos com a clarividência dos factos e a objetividade das fórmulas. Argumentarão ainda com segurança apodítica. Obedientes aos resultados, prescrevem obediência. E eu farei o que devo. Vou pôr as veias à mercê das vossas seringas e delirar com o melhor dos mundos. Saberei ainda agradecer às elites protetoras que sempre zelaram pelos pobres mortais. Tudo o que temos lhes devemos. E assim cairei num longo e hedonista descanso. Desviando-me da vossa história. Depois há que acordar e desatar as correias. Descolar as fitas. Atirar os frascos pela janela. Perdido andarei. Sem receita. Com axiomas fora de prazo. Seguindo contra indicações, estarei às portas de doenças intratáveis, porque não conhecidas. Então restará a mesa de madeira. O candeeiro de tecido usado. E a jangada que acolhe nossos corpos. Restará o que fizermos.

Fotografia de José Boldt

CANDEEIRO

Deixei cedo a hospedaria. Fui à instituição entregar umas folhas de papel químico. Tinha uns recados escritos pela diretora. Tudo para o meu bem. Fórmulas para a entrada nos bons caminhos. O bem e o bom que devo seguir. De quem são, pergunto. Uma de bata azul disse não acreditar que eu sobreviva fora daqueles corredores. Irei despenhar-me sem o aconchego dos milagrosos gabinetes. Será a perdição quando me evadir deste antro de diretrizes insanas. Para lá dos grandes muros serei uma nulidade. Ninguém. Meto nos bolsos as palavras encorajantes. E saio para o mundo. Já perto da estação encontro o doente do 24. Diz que anda à procura de um candeeiro e que este é o mês em que costuma abusar do álcool. Tira de dentro da gabardina o que me parece um frasco de perfume. Bebe um pouco. Oferece-me e aceito Cognac. Olha-me. Não deixe que lhe digam o que ser. Saiba ir para longe e seja forte quando aí se encontrar. Faça o que desejar. Estende-me a mão olhando-me fixamente com a barba por fazer. Aperta em silêncio. E desanda.

DESVELO

Os passos tortos revelam as agulhas no cérebro. Está frio e vermes de dentes finíssimos sugam as vigas em volta do coração. Aguento-me. Sem reverência a decretos. Saboreando gestos únicos. Em contraste com a aceitação apática da indução óbvia. Tratamentos psicopoéticos. A vida o poema. É verdade que certos comprimidos  me têm ajudado a dormir. O que me tem possibilitado ir ver os pescadores. Não pisei a instituição nos últimos dias. Percorri alguns trilhos nas proximidades. Falei com uma jovem ligada às neurociências. Revelou-me que o do 24 também não tem sido visto por lá. Que lhe ocupará a mente e onde deterá agora o seu olhar, interrogo-me! Nada sei do seu rumo. Imagino que invente frases.
Fui a um secção onde fazem balanços sobre o percurso efetuado. E estudam a possibilidade de alterar a fórmula adotada. Muitas renitências afirmaram. É difícil mudar de doença. Conjeturas. Nada sabem sobre o que adoece um homem. Nem sobre mudar. Não veem o que nasce no íntimo de um corpo em vadiagem.
Na hospedaria há restos de oficina e novos objetos. O sol já desapareceu. Há um cinza azulado com laranja ao fundo. Para lá dos prédios para lá do mar. Despeço-me deste dia para sempre. Vou acender o fogão e esperar que chegues.

LUARES

Na ala administrativa paira sempre um odor a pensamentos enlatados. As conversas são um género menor e o interrogatório ocupa a poltrona. Formulários e gavetas a ordenar os passos humanos, para impor seriedade às áreas mentais. E carregar de ridículo o devaneio. Nada de problemático para quem se arrastou anos pela noite ébria em paragens desconhecidas. As vozes afetadas e o vocabulário de ementa tornam-se mais agressivos para as frágeis cortinas neuronais. Saio daqueles corredores alcatifados e tomo medicação para apaziguar os ecos metálicos no labirinto auditivo. Compreendo finalmente que o profissionalismo tem que estar acima de tudo. Decido portanto ir a um café nas redondezas. Preciso de meio brandy. Fico a olhar o cálice uns segundos. Um hábito antigo. Uma espécie de homenagem a muitos que beberam comigo. Depois levanto-o lentamente e emborco uma pequena golada. É então que vejo o do 24 ao fundo do balcão. Acabo a bebida e dirijo-me a ele. Come uma sopa e tem ao lado um livro de Leopoldo María Panero. Antes de podermos trocar palavra empurra o livro aberto na minha direção. Leio.
No obscuro jardim do manicómio os loucos amaldiçoam os homens e as ratazanas afloram ao Esgoto Superior procurando o beijo dos Dementes.
Fecha o livro, acaba a sopa e pede um copo de vinho. Peço mais meio. Diz-me que tem um novo medicamento inventado por si. Psíquico. Territorial. Mas está ainda numa fase de experimentação. Depois me dirá a seu tempo quais os resultados. Pergunto-lhe quem é o autor do livro. Responde que morreu no mês passado e que um dia se cruzou com ele. Que bebeu do seu copo. Que tinha uma voz inesquecível. E cala-se uns minutos. Por fim pergunta-me o que tenho feito. Respondo-lhe tenho combatido adversários da errância opcional. Sorri levemente. Paga, estende-me o livro e aperta-me a mão como um Homem. Olho o livro e ele já vai na rua ao sol, sem ver ninguém.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!