POEMAS DO LIVRO “O ENIGMA DAS ONDAS” de Rodrigo Garcia Lopes

© José Boldt

Janelas para o mundo
 
                                                             The word is a window onto reality.                                                                                                                                                                   Zbigniew Herbert

O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade

mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:

uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra.

Isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras.

♣♣♣

Idílio

Uma carroça passa
pesada de acácias.

O mar e seu manto
de brancas feridas.

Mãos frias naufragam
na manhã sem lábios.

Árvores eriçadas. Luz antiga.
Estilhaços de névoa.

Revoada de pássaros negros.
Sombras em carne viva.

♣♣♣

O enigma das ondas

Que língua falam as ondas?
Talvez, no fundo, nos sondem.
As ondas falam das ondas
Em seu efêmero quando.

Espiralando sob a luz do meio-dia
de outono, nesse oscilante oceano,
São legionários romanos, exaustos e pálidos,
lutando contra exércitos de areia.

Hóspedes do vento, monumentos momentâneos,
filhas do imenso mar que é mãe de todo ser.
Mar que é tempo, mais antigo que o tempo,
Mar que é a eternidade em movimento.

Que diz a onda ciano no instante
de ser brilho de vidro estilhaçante,
ferindo ferozes os rochedos, virando
recifes de sangue, flores de medo?

Ou quando rolam redondas
no cinema a céu aberto do agora,
misturando, em seus sorrisos de Gioconda,
maresia e sal, silêncio e memória.

Falam de sonhos, impérios, naufrágios,
Distâncias, desterros, destinos, do vento,
Falam em frases frágeis cujos sentidos
se desfazem no litoral do pensamento.

Oceano, mare nostrum, desde quando?
Desde que os primeiros olhos
Ouviram seu louco esperanto
de algas, restolhos, espantos.

Pergunte a esses homens que estudam
o suave suel, seu entresseio, as marés,
que olham para o mar como a uma mulher
e atendem pelo nome de Odisseu.

Porque se repetem, sempre se repetem,
bêbadas de formas, ideias, de lucidez.
Porque estão em toda parte, como da primeira vez,
pedindo a nossos olhos que infinitem.

Que língua falam as ondas
Quando estalam nas cristas
Ou correm sobre si mesmas
Como um zíper de água branca?

Que idioma estão espumando,
em que dialeto, gíria, grafitti,
Dublando tanta brancura,
Abrindo mão dos intérpretes?

Que segredos escondem as ondas
quando me acordam de noite
do sonho onde não estive
como num filme de detetive?

Que língua rugem as ondas
quando estão se quebrando?
Que fábulas, histórias e lendas
Carregam em tantos estrondos?

Ou enquanto chiam, sob a chuva,
Ou mesmo quando parecem
Salvas de canhões anunciando
Um Waterloo invisível?

Uma a uma na praia se aconchegam
Como os versos de um poema cênico.
Linha a linha, como aplausos, chegam
Num misto de ternura e pânico.

(Quebram porque estamos mudos.
Quebram porque quando despencam
é como se os sons dos sentidos
nascessem no mundo).

Que dizem esses vocalizes fugazes
vocábulos de sal e maresia
em sua luminosa baba noturna,
em sua esteira matutina?

O que conversam com as nuvens
quando, em calmaria, as copiam,
ou com os surfistas que as toureiam
em manobras que chapam e opiam?

O que murmuram aos botos, gaivotas,
quando triscam suas paredes verdes,
espalhando seu spray ao vento,
um segundo antes de morrerem?

Sei que as ondas nos escutam (falando,
sozinhos nas praias, cegos a seus acenos)
há milhares e milhares de anos
com uma paciência que não temos.

Sei que sob a lua, exaustas, confessam,
quando recuam, mudas, em poças,
e cumprem sua líquida promessa:
A língua que falam é a nossa.

Os três poemas fazem parte do livro O Enigma das Ondas 


                                                                                   

(São Paulo: Editora Iluminuras, 2020) lançado em Portugal em 2022 (Porto: Officium Lectionis, 2022)
Site da editora Officium: https://officiumlectionis.pt/produto/rodrigo-garcia-lopes-o-enigma-das-ondas/

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foto ©Sophie Kandaouroff (2024)

Rodrigo Garcia Lopes,  poeta brasileiro, compositor, romancista e tradutor. Publicou sete livros de poemas: Solarium (1994), visibilia (1996), Polivox (2001), Nômada (2004), Estúdio Realidade (2013), Experiências Extraordinárias (2015) e O Enigma das Ondas (2020). Em 2001 seu poema “Stanzas in Meditation” foi publicado em Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Gravou dois discos de composições autorais: Polivox (2001) e Canções do Estúdio Realidade (2013). O romance policial-histórico O Trovador (2013) e Experiências Extraordinárias foram finalistas do prêmio Oceanos de Literatura. O Trovador foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2015.