A ROSA TATUADA – por Virna Teixeira

 

A ROSA TATUADA

O pedido para avaliar aquele paciente surgiu na reunião multidisciplinar. A nova psiquiatra da equipe insinuou que eu seria a pessoa ideal para vê-lo, pelo fato de eu ter trabalhado como neurologista no Brasil. Certo é que essas qualificações pregressas nunca me ajudaram muito no quartel do NHS com suas hierarquias. Seria apenas uma mãozinha, digamos, ou um teste para avaliar minha experiência prévia, mas topei. Aquela era minha última semana de aviso prévio na prisão, estranho que meu expertise fosse requisitado justamente às vésperas da minha saída.

O Sr. Smith havia sofrido um trauma de crânio prévio, mas declarou ao clínico geral na sua chegada que tinha problemas com transtorno de déficit de atenção e que sofria de estresse pós-traumático. Sim, de trauma eu entendo, obrigada, o caso é perfeito para mim, respondi irônica. Ouvi outras pessoas na reunião dando risada.  “Olha você tem todas as coisas / que  um dia eu sonhei para mim”, pensei de repente no Roberto Carlos. Talvez porque a minha cabeça estivesse cheia dos problemas daquele lugar.

Fui até o pavilhão dos recém-chegados, a ala “E”, onde os presidiários ficam duas semanas em média antes de serem remanejados. Os primeiros dias na custódia são sempre os mais difíceis para eles, e os mais arriscados para sua saúde mental. Alguns pertences são confiscados, há a revista, os testes de droga, o risco de abstinência, a triagem médica, as comunicações são restritas, é tudo muito básico e espartano, em meio à incerteza dos dias que virão e da pena.

Quando eles começam a acostumar-se com a rotina, vem o estresse da transferência de pavilhão, de adaptar-se a outros companheiros de cela e às peculiaridades do lugar, à outras equipes de policiais e funcionários. Dali podem ir para alas comuns, ou para a ala dos dependentes químicos, dos vulneráveis, para a temida ala dos agressores sexuais (para onde alguns recusam-se a ir quando são encaminhados) ou outras. Tudo vai depender da acusação legal e das decisões dos agentes penitenciários.

Adicione-se que esse estresse ainda é o temporário do temporário, já que aquela prisão é uma prisão preventiva, e a maior do Reino Unido. Ali os presos ficam aguardando sentença, o que pode levar semanas, meses (muitos meses) e em alguns casos, até anos. Depois eles são geralmente transferidos para outras prisões em Londres ou espalhadas pelo país. Outros recebem penas atenuadas na comunidade, ou até são soltos dependendo do caso, da defesa e do elemento sorte.

Eu aliás tive sorte com o policial de plantão naquela tarde, que foi cordial e prontamente abriu a cela para mim. Um consultório naquela ala era praticamente impossível, mas encontrei também um lugar para fazer a avaliação médica, uma sala de aula usada para educação dos presos. O jeitinho brasileiro não existe só no Brasil. Sentei de frente para o Sr. Smith, em carteiras iguais de fórmica cinza, a uma distância de um metro e meio uma da outra. Parecia até que estava conduzindo uma sessão de análise junguiana. Certamente eu teria algo a aprender com ele.

O homem era inglês, seu cabelo de um tom loiro escuro mas tinha a pele um pouco bronzeada, certamente por causa do verão, e um bigodinho curto, engraçado. Estava de bermuda, chinelas e usava uma camiseta cinza. Era magrinho, visivelmente inquieto, gesticulando com as mãos o tempo todo, mas muito simpático. Alguns colegas psiquiatras o descreveriam imediatamente como overfamiliar no exame mental. O fato é que nos sentimos imediatamente à vontade um com o outro. Eu andava precisando de familiaridade mesmo, de um pouco de calor humano naqueles dias. Ele era direto, muito honesto ao se expressar, e apesar de nos comunicarmos na sua língua, senti que falávamos a mesma linguagem, parecia até que o homem era brasileiro.

Eu me apresentei com o “doutora” de praxe acrescentada pelo meu sobrenome e o Sr. Smith ficou eufórico. Doctor Texxxeeraaa? I can’t believe it! Apontou para uma tatuagem no dorso da sua mão esquerda onde via-se uma rosa de estilo medieval. Em volta da rosa estava escrito “Rosa Teixeira”. Era o nome de sua filha. Ele disse “esse é meu lado puro” e me mostrou o outro membro superior, todo recoberto por tatuagens de caveiras, motivos góticos, facas. Explicou que aquele era o lado que o atiçava a fazer coisas ruins. Em seguida, fez um alongamento lateral com a cabeça. Comentou que sofria de dor na região da nuca e do pescoço, pois sentia a presença de demônios lutando, querendo lhe apunhalar pelas costas. Tinha sensações diferentes nos dois lados do corpo, pensava com os dois lados do cérebro, mas não havia sintonia entre eles. Definitivamente neurodivergente, pensei.

Fiquei boquiaberta com as sincronias, pois tenho uma pequena rosa tatuada sobre a escápula esquerda, que tem uma simbologia muito especial para mim. Recentemente tinha tirado a foto de uma rosa vermelha, solitária, em frente a uma parede de tijolinhos na minha rua. Estava fazendo acupuntura por causas de dores na região da nuca que atribuía às tensões de trabalho. Além disso, eu tinha acordado recentemente no meio de um pesadelo horrível onde tentava me livrar de um espirito ruim me atacando pelas costas. Não sou espiritualista, mas a coincidência foi impressionante. Talvez um aviso para tomar um passe!

O Sr. Smith contou que tinha sofrido um trauma de crânio há uns três anos atrás. Fora atacado por uma gangue. Bateram na sua cabeça, teve contusões, fraturas, e cortaram sua orelha. Quando chegou no hospital estava em coma. Esteve na UTI, passou semanas internado, precisou fazer uma neurocirurgia para retirar um coágulo. Perguntei porque fizeram isso. “Inveja”. Disse que estava indo bem com seu comércio naquela época. Invadiram seu negócio, roubaram seu dinheiro e fizeram aquela maldade.

Com trinta e seis anos, ele já tinha tido seis filhos. A única menina era a Rosa, fruto de uma paixão por uma portuguesa. Era dado a hiperatividade sexual, o que lhe causava problemas com as mulheres. Tinha passagens curtas pela prisão, por causa de brigas e dificuldades para se relacionar. Desta vez tinha infringido uma medida preventiva de violência doméstica. Contou que a acusação da ex-parceira fora injusta já de início, uma vingança por causa de uma traição. Agora estava criando problemas para ver seu filho. Já tinha conversado com o advogado, lhe assegurou que ele não deveria ficar muito tempo ali.

O Sr. Smith tinha um histórico muito claro de problemas com hiperatividade e desatenção desde a infância. Não conseguia ficar quieto na sala de aula, repetiu de ano algumas vezes, teve dificuldade para concluir sua educação e metia-se em confusão com frequência. Não parava quieto. A vida toda tinha sido assim. Fez um curso técnico mas não chegou à universidade.

Essa impulsividade sempre tinha lhe causado problemas. Ele falava demais, também era ingênuo às vezes, as pessoas tiravam proveito da sua desregulação emocional ou o exploravam. Ele levava a culpa e acabava sendo o bode expiatório, afinal sempre o identificavam como uma pessoa violenta. Sentia que não o levavam à sério, o que afetava sua autoestima. Às vezes abusava álcool, mas quase não bebia mais após o acidente. Não era chegado ao uso de drogas, e seu teste de urina foi negativo. Usava maconha em raras ocasiões.

Apesar dos sintomas nítidos de TDAH por muitos anos, só recentemente o médico de família o tinha referido para uma avaliação formal com um psiquiatra, mas a fila estava longa demais no NHS, com uma demora de dois a três anos. Relatou que sofria muito com ansiedade e estava tomando um antidepressivo há uns meses prescrito pelo clínico para este fim. Tinha ajudado um pouco apenas. Muito pouco. Sofria de insônia há muitos anos, não conseguia relaxar, a cabeça estava sempre a mil, pensando.

Confessou para mim que ainda estava só na cela, porém preocupado com o companheiro com quem iria dividi-la. Tinha tido problemas com isso no passado, era nervoso e o espaço era pequeno, já tinha sofrido bullying e não sabe se conseguiria se controlar se alguém o provocasse. Era a primeira vez que era preso desde seu acidente.

O TDAH aliás tinha piorado muito após o trauma. Confessou que tinha se tornado muito mais impulsivo, mais reativo à tudo. Estava sempre pilhado, hiper alerta, tinha pesadelos, medo de que o atacassem. Não confiava em ninguém. Tinha sensações estranhas do lado direito do corpo, premonições. Além disso, tinha dificuldade para focar sua atenção, perdia coisas o tempo todo. Estava vivendo com sua mãe, que cuidava dele, dos seus compromissos, das questões administrativas.  “Minha mãe é meu diário”, desabafou.

Ao final da entrevista inspecionei seu crânio, onde havia uma cicatriz prévia de craniectomia na região fronto-temporal esquerda, e a metade inferior do pavilhão da orelha havia sido mutilada, que maldade. Fiz um exame neurológico breve, que mostrou sequelas muito discretas do seu trauma, e lhe comuniquei que sem dúvida achava que ele tinha TDAH, mas estávamos proibidos de fazer avaliações naquele momento, por causa da falta nacional de medicamentos. Eu iria conversar com meus colegas, pois estava para sair do meu posto e sentia que ele realmente precisava de medicação. Acrescentei um indutor de sono por cinco dias, como de praxe, respeitando o regulamento da farmácia, e sugeri um encaminhamento para a equipe de psicologia por conta do trauma, o qual ele aceitou prontamente.

O Sr. Smith ficou contente mas também chateado com a notícia de que eu iria embora. A consulta toda foi muito intensa. Ele comentou que Deus tinha me enviado ali para ajudá-lo. Pensei na missão que me tinha sido dada, naquele momento muito específico. Eu gostava de trabalhar ali, e aquele era um momento duro para mim. Eu estava cansada de lutar com tantos obstáculos, o que motivou minha demissão. Sempre fui combativa mas naquele momento me faltava apoio naquele lugar, e na vida lá fora. Era como eu se precisasse de um homem forte, uma proteção. Eu pedia ajuda mas ninguém me ouvia, talvez fosse a minha dificuldade de me comunicar. Como ele, eu também não era levada à sério, e sofria com a minha sinceridade, ainda mais sendo latino-americana.

O Sr. Smith era muito magro, quase anoréxico, ele tinha sobrevivido a muitas coisas, a um trauma horrível. Eu o entendia perfeitamente. Mais do que eu poderia imaginar. Ele estava mais para vulnerável do que para violento. Apesar disso era um homem forte, muito forte. Eu precisava da sua força, e ele da minha. Não sou supersticiosa mas tive uma intuição brusca. Falei para ele: “eu jamais toco nos presos mas queria fazer um pedido. Posso tocar na sua rosa?”. Claro que sim, ele me disse. E ficou em silêncio. Toquei brevemente na tatuagem com a palma da minha mão, depois o conduzi de volta para a cela.

Aquele gesto me trouxe uma calma que não sei explicar. Voltei mais serena para o prédio anexo da administração do NHS no presídio.  Discuti o caso com meu outro colega, chefe da equipe, um inglês baixinho do norte da Inglaterra, careca e sarcástico, com um bracelete de metal em volta do punho, mas no fundo boa gente, um verdadeiro apreciador de raridades musicais.

Para minha surpresa ele foi tomado de empatia por causa do trauma de crânio do paciente, do que descrevi e do impacto na qualidade de vida do Sr. Smith, no seu TDAH, e concordou – uma raridade – que eu aplicasse questionários para uma avaliação formal do seu transtorno.

Cheguei na manhã seguinte inspirada no trabalho, usando um vestido chemisier preto, mas com um caimento rodado, um modelo vintage estilo rockabilly dos anos 50. O vestido tinha uma rosa vermelha bordada de cada lado, logo abaixo da gola, com tubulações e botões forrados vermelhos, combinando com o cinto de tecido. Usei com uma meia preta opaca e umas botinhas de camurça. Eu portava uma sacola de lona à tiracolo com a palavra DIVA em dourado, de uma exposição de moda recente num museu londrino. Eu costumava usar este tipo de bolsa para carregar minha prancheta, meu caderno de notas nos pavilhões, mas nunca tinha usado aquela sacola, e raramente usava vestido na prisão. Era uma espécie de costume de despedida. Foi um sucesso, recebi vários elogios sobre o meu estilo naquele dia, inclusive dos presos.

O colega psiquiatra me viu passando pelo corredor em direção contrária ao outro prédio e exclamou num tom engraçado: DIVA?? Olha só a sua bolsa! Daí me dei conta que o questionário para TDAH se chama DIVA, e que  eu carregava DIVA na sacola.

O Sr. Smith estava sem camisa quando o policial abriu sua cela na ala “E”, num bate-papo animado com o novo companheiro de cela, um rapaz de uns vinte e três anos, loiro, esguio, atlético e agitado como ele. Já foi me dizendo, sorrindo: “arrumei aqui um camarada que sofre do mesmo problema”. De fato, um quarto dos presidiários sofre de TDAH, e por tantas razões, sobretudo por causa dos lares caóticos onde cresceram. O cérebro tem que se adaptar de alguma forma para sobreviver, mas acaba causando disfunções executivas, que prejudicam inclusive a esfera social. Ele virou-se de costas para pegar sua camiseta. Era ainda mais magro do que eu pensava. Vi que tinha asas tatuadas sobre as escápulas.

Ficou muito feliz com a notícia da avaliação. Voltamos à mesma sala e sentamos nas mesmas cadeiras, com os lugares trocados. Ele respondia tudo muito rápido, eu prosseguia com as perguntas na mesma velocidade mental. Ele mexia uma perna sem parar e de repente apontou para mim pois tinha notado que eu também balançava a perna incessantemente: “parece que você pegou minha doença”. Eu respondi brincando: “sim, talvez eu tenha a mesma doença que você.”

O resultado foi o que eu esperava, e ainda mais surpreendente, ele tinha TDAH do tipo misto, bastante severo, e seus resultados eram 100% compatíveis com o transtorno. Ele precisava de tratamento, e o psiquiatra chefe me deu respaldo com o líder da farmácia para começar a medicação estimulante, no meio da escassez da substância no país (culpa do Brexit): outra vitória.

Comuniquei o diagnóstico ao Sr. Smith. Ele ficou comovido com a confirmação formal e ofereceu-se espontaneamente para escrever um depoimento em meu favor para o NHS. Nem era necessário tanto, expliquei, mas eu realmente precisava de feedbacks para a minha revalidação. Vários aliás, e sempre esquecia de pedir aos pacientes para preenche-los. Seria modéstia, autossabotagem?

Quando saímos da sala ele avistou um conhecido seu. Não se conteve, acenou, e soltou um grito de moleque, bem jovial: Hey geezer! Entreguei um formulário de avaliação para ele, que recolhi mais tarde. Suas palavras eram honestas, calorosas, expressando uma gratidão genuína pelo meu atendimento.

Aquele foi meu último dia na prisão. Cheguei em casa, peguei meu Ipad, meu lápis digital e ainda usando o vestido preto, sentei no jardim. Fiz uma mistura de colagem com pintura digital em cima da foto da rosa, com escassas imagens sobrepostas. Fui trabalhando intuitivamente com cores muito vivas e camadas num fundo vermelho, como num transe. Mantive metade da parede de tijolos e borrei seus contornos do outro lado, até que sumissem no vermelho-vivo. Havia manchas púrpuras como equimoses antigas na base da imagem, um degradê azulado, e a luz sobre a rosa e seu caule foi realçada pelo amarelo. Parecia uma rosa psicodélica.

Fiquei contemplando aquela alquimia de cor, como uma representação visual daquele encontro. Espero que o Sr. Smith melhore ao começar sua medicação, e imagino que irá. Porém sei que apesar da luta para se conseguir este tipo de tratamento, a farmacologia só não basta, ao contrário do que se pensa e crê na medicina religiosa baseada em evidências. Medicamentos falham e faltam, têm efeitos colaterais. As medidas precisam ser mais profundas, muito mais profundas, educativas inclusive, mas ainda assim é um começo. Pode ser o recomeço de um outro entendimento de si. Pensei na rosa, na sua simbologia cheia de mistérios, relacionada à pureza, e ao feminino. A Rosa Teixeira que esse homem carrega no dorso da mão.

♦♦♦

Virna Teixeira é médica, poeta, escritora e tradutora. Nasceu em Fortaleza e vive em Londres há vários anos. Teve vários livros de poesia publicados no Brasil e exterior, e um livro de contos, A Pupila, que saiu pela Kotter no Brasil e Portugal. O conto ‘A Rosa Tatuada’ foi inspirado no seu trabalho como psiquiatra na prisão de Wandsworth, em Londres. Virna também é artista visual e coordena um projeto editorial independente, Carnaval Press (@carnavalpress).