POEMAS DE OLINDA GIL

 Catarina Eufémia

Eufémia.
Fala bem. Diz demais. Às vezes não se pode falar.
Eufémia, reza, preza, por um melhor dia.
Oração é uma palavra, há deuses que não ouvem.
Não há palavras mansas, eufemismos, que nos salvem.
Reza em silêncio, Eufémia. Por um dia melhor.
Não digas muito, não vale a pena.
Deus se ouvir nem precisa que fales.
Mas Deus ensurdeceu.
Eu, fêmea. Sabes quem és. Sabes o que queres.
És mulher.
Mulher é criadora.
És cuidadora, és carregadora das dores, todas as dores.
Ninguém sabe quem és.
Tornaste-te apenas nas tuas palavras.
Depois destas foi só o teu olhar,
a ver o gesto que te matou.
Foste traída pelo teu próprio nome.
Depois vieram os eufemismos:
digam o que disserem, o que quiserem.
Endeusem-te, iconizem-te, coloquem-te em t-shirts,
bonés, camisolas.
Em livros e poemas.
Em todos os sítios que quiserem.
Estás morta, não sabes.
Deixaste de ser dona, até da tua própria morte.
O mundo vê a tua face.
Mas tu não viste os teus filhos crescerem.

Florbela Espanca

Florbela.
Flor Bela.
Que os poemas mais belos criaste,
Mais sentidos, mais verdadeiros.
Vias o mundo com as tuas mãos,
Não havia passado nem futuro,
Não havia benfazeja, artifício.
Não te prendias a correntes, a conselhos, a dogmas.
Eras só poesia.
Talvez por isso não fosses objetiva,
Racional, obediente.
Não estiveste à frente do mundo,
Nem presa no passado.
Eras só poesia,
E sofrimento que escrevias,
E sofrimento com que morrias,
No fim. Tiraste a palavra à vida,
Com as tuas mãos cumpriste a tua decisão.

 

 

 

 

 

 

Mariana Alcoforado

Teu nome, Maria e Ana,
mães que não foste,
mãe como se não a tivesses.
Tantas mulheres,
nenhuma mãe de filhos.
algumas mães de coração,
que acolhiam com amizade,
as meninas ali guardadas,
naquela casa cheia e barulhenta,
dita de Deus, mas por Deus abandonada.
Tu, Mariana, tinhas dúvidas qu’Ele andasse ali.
Talvez porque tu não O guardaste
e tivesses vivido o amor com aquele francês,
homem ingrato,
que quis a tua cama e o teu corpo
e não te foi capaz de tirar daquela prisão,
tão espelunca quanto bordel
que só da boca (das paredes) para fora era um lugar santo.
Olhas agora pela janela,
vês nos campos e nas ruas da cidade
a liberdade e a vida que não tiveste.
Nunca viu o campo sem ser ao longe.
Vives as recordações,
Agarras-te a elas como a tua única centelha de vida,
de experiência.
Ele pode ter partido, mas deu-te isso.
Sabes que és mulher, conheces o teu corpo,
isso ninguém te pode tirar.
– Escreve, deixa as tuas memórias. – Pediram-lhe.
– Tu sabes fazer. Deixa que saibam.
Pouco se importava que soubessem,
o seu destino nunca se alteraria.
De confinada não passa.
Foi presa antes do crime.
Mas não lhe interessava os romances
que circulavam escondidos nos hábitos das freiras.
Havia as cartas,
escondidas debaixo de uma pedra solta do chão do seu quarto
– Tenho isto. Sei que é difícil chegar-lhe às mãos,
nem isso interessa.
Quaisquer mão, quaisquer olhos que lhe toquem
são iguais a ser ele.
– Que as cartas conheçam o mundo que eu não conheço.
As palavras foram levadas,
guardadas, foram ouvidas. Reproduzidas.
O erotismo preso nas palavras,
haveria de submergir no futuro.
A rebeldia, essa, existiu sempre.

Mariana Maria

Mariana Maria
Nome simples de mulher
Sem patronímico que te marque domínio

A tua pertença foi ao universo da fome
Os irmãos pequenos descalços
A roupa remendada com esmero
O monte meio caído onde viviam

Lá em baixo havia um pego
Onde os homens pescavam.
Mal havia em trazer comida a casa?

Fez-se mulher, desejou ser bonita
Ter vestidos airosos
Dinheiro para os sonhos
– esses que ninguém pode parar.

Houve um homem que amou
Lhe plantou filhos na barriga
O trabalho não terminava
E um dia as suas crianças
Teriam fome como os seus irmãos.

Melhor era não ter homem.
Ter apenas sonhos.
Melhor era esquecer as roupas belas
Que as roupas deixadas por ele lhe serviam bem.
Só permitir o fim aos seus olhos
Que camponesa via.
De resto haveria de se fazer
História das suas vontades.
De cana de pesca ou arma de caça ao ombro,
De voz forte a cantar.
A sua rebeldia matou a fome,
Matou a pobreza, fez viver.

A velhice é triste, feita de memórias
Surpresas amargas mesmo no final.
Mas o orgulho ainda lhe tirava um sorriso.

Mariana Maria,
Sem nome de homem,
Mas com roupagem de um.

Une mère pauvre by Alfred de Curzon

 

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Olinda Pina Gil estreou-se na escrita no “**DnJovem**”, suplemento do “Diário de Notícias”. Autora de ***Contos Breves*** (2013), ***Sudoeste*** (2015) e de ***Sobreviventes*** (2016) e dos livros infantis ***O Príncipe e o Lobo*** (2022) e ***A Menina e o Circo*** (2023).  Para além de contos publicados em ebook, tem colaborações dentro e fora de Portugal.  Foi agraciada em vários prémios em conto e poesia.