O REAPROVEITAMENTO DAS ÁGUAS RESIDUAIS TRATADAS – por Ricardo Amorim Pereira

 

O reaproveitamento das águas residuais tratadas

Recentemente, foi sentido um dos maiores sismos verificados, neste século, em Portugal. No dia seguinte, muito se falou sobre a preparação necessária para enfrentarmos estes eventos. Como sempre acontece, o assunto caiu logo de seguida, estando agora no maior dos esquecimentos. Esta característica de se conferir importância a um determinado problema, quando o mesmo invade as nossas rotineiras vidas, para, logo de seguida e assim que deixa de se colocar de um modo incontornável, o esquecermos, está presente nas nossas sociedades.

Tal sucede também com a questão da seca. A seca, que infelizmente ainda não deixou de ser uma realidade no extremo sul do nosso país, atualmente, no restante território, ou está bastante atenuada ou é mesmo inexistente. Isto, todavia, não deve permitir que caiamos no erro de acreditar ser este um problema distante. Essa ideia falaciosa esbarra com a realidade que nos diz que, com as alterações climáticas, nas décadas seguintes e em todo o território, este fenómeno tende a tornar-se mais frequente e intenso.

Deste modo, importa que reflitamos se tudo o que pode ser feito para atenuarmos este mal estará a ser feito. Dito por outras palavras, na medida em que é humanamente possível estar preparado, estaremos preparados para enfrentar uma grave seca, por ventura uma mais grave do que qualquer outra que tenhamos enfrentado? Acredito que a resposta a estas perguntas seja negativa.

Pedindo emprestada à medicina a sua linguagem, a terapêutica para a doença da seca é vasta. Desde a poupança da água no uso doméstico e industrial, passando pelo colmatar do desperdício ocorrido nas redes de distribuição, ou até considerando a construção de centrais de dessalinização, muitas são as possíveis propostas de mitigação deste mal. À medida que, com o garantido agudizar das alterações climáticas, o problema se vá intensificando, acredito que as sociedades terão de recorrer a todas elas. Todavia, hoje, falo de uma em particular: o aproveitamento das águas tratadas nas centrais de tratamento de águas contaminadas.

Desde há várias décadas que, progressivamente, o nosso país vem tratando as suas águas contaminadas, quer pelos usos domésticos quer pelos industriais. Este processo, não estando ainda totalmente completo, encontra-se já numa fase de desenvolvimento muito adiantada, o que nos permitiu recuperar a saúde ambiental de rios e de praias. Essas águas tratadas, que, segundo os especialistas, apresentam tão boa qualidade que inclusivamente poderiam ser bebidas sem com isso causarem qualquer tipo de doença, continuam a ser, quase na sua totalidade, desperdiçadas.

De facto, o que acontece é que, quando não são despejadas diretamente no mar (o que sucede, por exemplo, numa das praias de Vila Nova de Gaia), a quase totalidade destas águas é despejada nos rios e, dada a proximidade à costa e a falta de barragens no caminho restante (note-se que as grandes cidades portuguesas se encontram no litoral), daí, seguem para o mar. Esta situação, num país como o nosso que, como mencionado, está num padrão de crescente escassez de água, é de facto incompreensível.

Por motivos de segurança e por haver quem possa sentir-se repugnado por essa ideia, apesar de haver especialistas, mesmo no que concerne à sua ingestão, defendendo a total segurança no uso dessas águas descontaminadas, não defendo esse emprego. Todavia, parece-me totalmente incompreensível que não se usem as mesmas para a rega de jardins públicos, limpeza de ruas, de camiões e caixotes do lixo, etc. etc., enfim, para o uso em todas as áreas em que as autarquias, atualmente, empregam água totalmente sã para, logo de seguida, a lançarem no mais total dos desperdícios. Tomei conhecimento de que algumas autarquias, recentemente, têm desenvolvido projetos neste sentido mas, os mesmos, são ainda muito insuficientes.

É evidente que, para que tal pudesse suceder, teria de haver investimento público, por exemplo, na construção de depósitos que permitissem armazenar estas águas para que aí ficassem estacionadas até que se mostrasse necessário o seu emprego. Sei que os recursos são escassos mas numa matéria de tão grande importância como esta – afinal como poderemos nós viver sem água? – impõe-se que estes apareçam.

Assim e como costumo fazer nos artigos que tenho vindo a escrever para esta prestigiada Revista, não me limito a identificar uma falha antes, partindo daí, instigo cada um dos leitores a agir. Neste caso, a ação passará necessariamente pela pressão junto do poder político. O poder político, numa democracia saudável, como se quer a nossa, não poderá ser uma entidade distante. Terá de ser presente, próxima e prestadora de contas. Todos podemos pressionar os governos centrais e autárquicos. Por exemplo, é possível participar em reuniões, quer nas juntas de freguesia quer nas câmaras municipais, usar da palavra e instigar os políticos a agir no sentido de se aproveitarem estas águas, num mundo em mudança e marcado pela escassez dos recursos hídricos, cada vez mais preciosas.

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Ricardo Amorim Pereira, doutorando em Ciência Política, com interesse na área da ecologia política.