Além da infância, em que olhar as nuvens e brincar descobrindo formas nelas é uma tarefa a que nos dedicamos com todo o empenho, são poucas as vezes em que as olhamos com olhos de ver.
Esta injustiça para com as nuvens é sinal evidente de que ser criança é coisa já passada há muito tempo e que, à inconsciência disso, acrescentamos a ignorância das coisas que fazem da infância a fase mais feliz da vida.
Ver as nuvens a passar, adivinhar a forma que assumem ou que assumirão de seguida, admirar a claridade de umas e a obscuridade de outras, perguntar por que razão umas passam mais depressa e outras mais devagar, ou ainda, interrogarmo-nos sobre o seu peso ou por que razão não caem, são brincadeiras que o avançar da idade esquece sem sequer nos lembrarmos que esquecemos.
Manifestamos satisfação com um dia de céu azul, limpo, sem nuvens, e não reparamos que num dia assim nada há para ver no céu.
Não há lugar melhor para observar nuvens do que uma ilha. Alpendre de ver nuvens, a ilha é o melhor lugar do mundo para as observar e contemplar. Na ilha de onde escrevo estas linhas, S. Miguel, Açores, devia haver nos seus miradouros, nos seus miranuvens, acessível a todos, turistas ou não, um pequeno catálogo de cirrus, stratus ou cumulónimbus.
Mesmo o único programa da televisão que nos informa com segurança razoável sobre o que vai acontecer no dia seguinte, o boletim meteorológico, é confrangedoramente lacónico acerca das nuvens, ficando-se pelas vagas expressões «muita nebulosidade» ou «pouca nebulosidade».
As notificações que recebemos no telemóvel sobre o estado do tempo são quase frugais – «céu limpo, sem nuvens» ou «céu com muitas nuvens». Não está certo! Dizer «muitas nuvens» é dizer nada. De que tipo são? São nuvens habituais ou há alguma que se destaque pela sua raridade? Justifica-se que nos desloquemos a algum lado para as observarmos melhor, ou não? Isto sim, seriam informações interessantes que uma aplicação para telemóvel sobre o tempo deveria conter.
É que há muito a dizer sobre as nuvens. Do mais básico, que são partículas de água na atmosfera, à complexidade da grande nuvem de Magalhães, as nuvens são, no que têm de efémero, as únicas coisas eternas que passam sobre a nossa cabeça.
Compreende-se, portanto, que tenha ido às nuvens quando descobri que existe uma sociedade de apreciadores de nuvens. Fundada em 2004 por Pretor-Pinney, um inglês que acha que as nuvens são injustamente difamadas, esta sociedade conta já algumas dezenas de milhar de membros.
A leitura do seu manifesto é, literalmente, de (e)levar às nuvens. São apenas cinco pontos, mas todos eles celebram as nuvens como a mais bela manifestação poética da natureza. E, se isso não bastar, diga-se que observar nuvens é, talvez, a melhor justificação para a preguiça que, democraticamente, ataca toda a gente.
Para terminar esta minha conversa, deixem-me repescar um poeta e prosador português, infelizmente pouco lido nos dias de hoje, José Gomes Ferreira, um neo-realista que nunca chegou a sê-lo. Ainda bem, dirão uns; ainda mal, dirão outros.
Num pequeno texto, intitulado «Parece impossível mas sou uma nuvem», o autor, que atravessou todo o século XX, coloca em cena um grupo de sonhadores que, de nariz para o ar, contempla as nuvens e procuram dar nomes às suas formas. Um vê um cavalo de batalha, outro, uma cabeça de romano a que só lhe falta falar latim. José Gomes Ferreira vê apenas nuvens mas, desafiado insistentemente pelos outros, decide-se por um hipopótamo. O poeta de «Viver sempre também cansa» diz que, na vida e nas nuvens, sempre se quer ser alguma coisa, quando devia ser bastante ser-se o que se é.
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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi¬ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.
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