o quanto a gente é caroço da gente
se sofre por não conseguir semear rebrotar
o que seríamos sem a nossa casca?
tem gente que não cai nem de maduro
tem gente que tá lá no solo
livre da haste mas não do poder das formigas
as horas despencam
os dias vão caindo dia-a-dia
as descobertas se tornando bagaços
o tempo vai modificando a areia
os grãos vão migrando para perto e longe
de si
a gente é o caroço da gente
bagos na escádea picinguaba na árvore azul
as horas despencam
os dias vão caindo dia-a-dia
as descobertas se tornando bagaços
e a gente é o caroço da gente
♣♣♣
era a máquina de fazer manhãs respirando fundo no frio
do azulejo da cozinha engolindo água e soltando vapor
um navio em alto lá da viagem que mar nenhum se prontificou
era a cafeteira e a manhã
no alto da cozinha
este navegar um despertar atrás do outro
bufando intervalos com bolhas de água engasgadas no tubo
não era nenhum touro furioso embora lançasse os
cornos de cafeína e luz
e aquele que desperta entra na arena
rodeada de público à espreita
buscando fraquezas alheias e driblando as suas próprias
♣♣♣
me minguo
me escuto dentro do musgo
me tento cada vez que arrebento a membrana
daquilo que vem sendo os afazeres das coisas
trabalhando sua existência em mim e do outro lado de
mim
lá longe quando a ponte vem
me encontrar
me fazer menos distante de mim com os outros
o lado de fora da jaula
o sair do caramujo o andar carregando a coragem
e a gosma de lume que fica no chão
me rastreando
os fuxicos das coisas
aquele atarantado delas empurram
não saem do meio do caminho
ruídos de talheres e pratos gente correndo
gente se cumprimentando gente roncando
gente que desconversa gente comprando sapatos
dentes que rangem
o animal que as coisas nos fazem ser
o animal que as coisas nos fazem ser
anda de um lado ao outro na estreita jaula
de cada olhar
ranger de encurralado
ranger diante da briga que a liberdade
ensina
li o teu corpo palpável como a cegueira
da terra do escuro das asas queimadas de fênix
o hálito sopra de tua boca embaçado juramento
li tua musculatura
sobre a minha pele e era a queda da certeza
e do desorientar-se tu es o deus da saudade
e da morte que a tua despedida traz
li o meu nascer e morrer
e era a flor d`água na correnteza da vida
leio o deserto das noites e o esboroar das cinzas
quando a tua ausência é uma letra maiúscula
tu es o deus da saudade e arde na minha alma
como o ferro gélido leio a morte que é o não te viver
leio a espera em tudo que vejo
e é como se tudo estivesse apaixonado por ti
ansioso da leitura do teu existir
do teu corpo nas minhas mãos na minha boca
na minha alma no meu corpo
♣♣♣
o sol e o rio brincavam no final da tarde
o sol se jogava no rio
o rio banhava o sol
o sol prisioneiro do rio
o rio prisioneiro do brilho
e atrasaram a tarde
o tempo que passava
parou para entender a brincadeira
e sorriu a sombra suave
que corta o dia no mais alto
do horizonte e paira
feito névoa acima da tarde
o sol e o rio não se cansavam
e continuaram brincando
mesmo porque o tempo
distraiu-se no caminho
mas ouviu os desaforos da noite
e teve que se apressar
foi quando o sol dentro do rio
não teve mais tempo de regressar
ficou a banhar-se nas águas negras
e o rio contente de ter vencido a brincadeira
virou uma correnteza dourada a noite inteira.
♦♦♦
Viviane de Santana Paulo (São Paulo/Brasil), poeta, romancista, tradutora e ensaísta, autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth – Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã (poemas, Multifoco, Rio de Janeiro/RJ, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, Alemanha, 2005), Passeio ao Longo do Reno (poesia, Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia.
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