“falar é morder uma epidemia” de Luís Serguilha (recensão de Ana Oliveira)

SERGUILHA, Luís – falar é morder uma epidemia. Edição BUSÍLIS. Tropelias & Companhia – Associação Cultural, 1ª Edição – Maio de 2019, Portugal.

♣♣♣

Luís Serguilha como escritor, ensaísta e poeta, é perentório na sua postura de insubmissão, como criador de conjunturas. Desloca-se pela literatura como manobrador de potências em mudança, onde a desinquietação é uma constante, destacando-se uma pronúncia de certo modo inacessível. Como poeta, distancia-se da pessoalidade incorporando o mundo, percecionando díspares acústicas e visões em alvoroço sempre fora de si mesmo.

Serguilha rompe convicções enaltecendo a inconsciência, pois no seu oposto, encontramos a sujeição aos costumes e normas castradoras da sociedade. Na inconsciência descobre a inovação, numa menção clara ao espírito dionisíaco. A sua escrita abrange faixas escondidas da linguagem com símbolos mutantes e sem bússola. Como poeta não se submete à falsa moral, não sustenta coações nem fronteiras, confisca o inacessível experimentando de forma destemida o desconhecido.

A sua escrita acontece de uma forma exilada, irrequieta e aparentemente desalinhada, envolta em depredação onde desenraíza o material. Nesta obra peculiar, “falar é morder uma epidemia”, recolhe na sua prática filosófica as conceções de outros pensadores como Edgar Morin, Heraclito, Kant, Nietzsche, Anaximandro, Goethe e Kierkegaard, para desenvolver outras cambiantes adaptadas ao seu sentir na sua desconstrução do universo. Como criador singular, a sua poesia resvala por momentos de transe em dissertação livre, que apela para acústicas incompletas pois que ligadas à ressonância do espanto, despedaçando o universo apinhado de auscultações em êxtase. Realça o pavor das forças expressionistas sempre em mudança, onde se captam incontornáveis atrocidades.

O poeta liberta-se como quebrador de consciências, entrando em rutura com o imposto numa acesa perspetiva agramatical que se acende na impessoalidade, deslocando-se num abismo de saberes movíveis, em transe incontrolável, transitando entre topografias de explorações e estranhezas, que se esgrimem através da escrita. A sua inspiração criativa é embebida por tramas fractais, onde assomam enredos e viagens interpretativas entre corpo e espírito, tornando visível o invisível. Religa-se ao caos escalando a montanha inacessível da realidade, entre mundos prováveis onde se traçam janelas infindas e geografias brutais de contágios. A palavra é repleta de mudança perante o inapreensível, captando pela sua força feminina, o núcleo do mundo através de incógnitas irresolúveis.

Na obra “falar é morder uma epidemia”, Serguilha manuseia com premência, o triângulo conceptual, homem, corpo e fala, numa antropologia em transmutação. O desejo e a rebelião, regeneram o caos através do grito em forma de poesia onde naufraga o real. O homem reage ao óbito perante múltiplas vontades. A fala aparece como um aclamar da exalação forasteira, em descobertas problemáticas, perante um mundo hermético de matérias incorpóreas, multiplicadoras de fissuras e propenso à germinação poética. A epidemia insere-se no perigo dos tempos enraivecidos. Neste contexto, a fala que tenta compulsivamente o suicídio, alimenta-se de contágios e de flagelos, disseminados por todo o lado.

Deste modo tal como Serguilha, o leitor alcança campos incertos de sofisticação existencial, apercebe-se de um mundo sem verdade onde proliferam as arquiteturas do inverso em manobras espaciais e temporais.  Defronta o holomovimento através da descoberta ininterrupta do mundo, enfrentando suicídios e reinícios paradoxais, remetendo para a tragédia de Sísifo. O leitor nega conjunções hirtas, viajando por cartografias sem limites. No “aqui-agora” há um êxtase de alucinação e vontade, do qual depende a vida, deparando-se com polissemias e transferências infinitas que se produzem no tempo em transfiguração.

O poema, fruto de violências criativas, absorve um mundo de desejo em que desobedece, ensaia e conecta-se ao desassossego do ser humano, que em vigília criadora capta um devir sem origem nem destino. O animal-poema agarra o absurdo da vida em geografias de hostilidade. O poema nesta obra, “falar é morder uma epidemia” acontece como um bailado em corrupios arrebatados, defrontando deste modo a morte e respirando entre coexistências cósmicas. A força poética de Serguilha desfaz as perspetivas, esculpindo espaços e tempos, transformando-se no grito da vida soltando-se, decifrando, desfazendo rotas e criando trilhas inumanas agramaticais. O poema quebra sentidos e mistura conceitos aqui e agora. E assim se constrói carregado de vazios infinitos, lutando contra a pulsão da morte, assimilando uma voz de vigores, musicalidades e chãos incomensuráveis.

A conceção de língua aparece em Serguilha enquadrada na premissa, “falar é morder uma epidemia”, modificando-se em viagem constante por frenesis infetados. Nesta situação, as palavras são energias em mutação. Elas aparecem pela necessidade do grito em aflição, onde germinam as dinâmicas de alteração, de algoritmos. O verbo é usurpador ligando-se às substâncias inacessíveis. A fala torna-se uma combustão silábica que reemerge nas topologias incógnitas, em ensaio ininterrupto por entre os ruídos de todas as disciplinas do conhecimento. O próprio grito abre acesso para o leitor do caos. A palavra em inquietação suga então, as contaminações em estado de heteronomia.

Os espaços que perfazem o mundo, são ligações sem autodomínio, que se inserem no panteísmo. Deus é o mundo e está em todo o lado, mesmo no vínculo da invisibilidade da substância. No mundo, nada é categórico nas propagações dos seres. Há uma memoração cósmica que difunde a metamorfose entre perplexidades, onde tudo reemerge como um caleidoscópio. A própria natureza caótica com venenosas geografias tem uma língua infinita. Sem ela, o mundo colapsa. O que vive numa duração de possibilidades são bramidos e vigias em numerosos devires de vontades múltiplas, onde tudo é ativo, tudo se contamina em interdependência. O panteísmo surge no contexto das forças em desordenação, de zonas movíveis onde tudo se toca, mas onde a face inconstante do avesso do mundo é inacessível. A heteronomia exige passagens múltiplas e veementes onde polissemias se erguem. Desta forma, o panteísmo manifesta-se em planos desviantes e direções variadas, numa voz em constante exaltação. Reincide o “ápeiron” de Anaximandro, destacado pelos criadores cósmicos do caos indefinito e infinito.

O corpo modificado pela paixão e onde baloiçam patologias, é visto como apologia à vida e à liberdade, numa amálgama periclitante de falas e de trajetórias cruéis. Corpo e linguagem submergem em consciência onde se propaga o grito da morte, pois que o real se entranha no animal, que como cadáver vivo enfrenta o dilaceramento.

O homem estando amarrado e de rosto desfeito, joga dados absurdos contra as energias do mundo e a crueldade da vida, perspetivando a morte como impregnação do inabordável. Tudo lhe foge numa veemência em que a dubiedade da existência lhe é estranha e funesta.

Serguilha aflora de forma subtil parte do pensamento de Kierkegaard sendo marcado pelo subjetivismo da experimentação pessoal. Não existe uma verdade objetiva no meio do caótico. Trata-se de encontrar uma realidade que seja verdade para o próprio, admitindo uma dificuldade de reconhecer as ações do ponto de vista moral. Neste deserto contaminado de silêncio e indiferença de Deus, estoura o grito humano que reincide sobre sensibilidades como o pavor e constrição, navegando num mar de incertezas.

Serguilha aproxima-se de algumas ideias de Edgar Morin ao realçar as incapacidades do conhecimento. A uniformidade é descoberta na diversidade dos saberes quando elabora uma postura literária, que enfrenta as indeterminações afloradas nas ciências. Pulula uma estratégia dos acasos. Torna-se exequível investigar a noção de um cosmo, que integra a sua disposição na impermanência, na deslocação, na incerteza e na dispersão energética. Surge nesta conjuntura uma complementaridade entre prodígios desalinhados e fenómenos estruturadores. Há como que um vórtice, uma transmutação e fragmentação organizadora, num mundo contingente. É decompondo-se que o cosmo se cria, numa recreação de interações que provocam a colisão entre elementos. O caos apresenta-se como fenómeno de duas faces pelo qual o universo se desintegra e organiza, perante ligações baseadas em contextos heterogéneos. Coexistem a perturbação e correntezas, onde se espraiam necessárias agremiações e acoplagens, através da confusão e desassossego. Explora-se a problemática do avesso e do direito. Há um mundo de devastações e derrocadas, encarquilhamentos, explosões e cruzamentos de sistemas regeneradores estrangeiros. Tudo carece da desordem para organizar-se, desde o átomo até ao homem. Surge assim um tempo emaranhado, pois o vigilante subsiste no mesmo instante que o mundo. O homem pode ser uma consequência do devir, mas o próprio cosmo é um subproduto do devir antropológico. A complexidade surge ao mesmo tempo como condicionalidade, multiplicidade e conflito, desenvolvendo-se uma reestruturação permanente, numa relação entre seres múltiplos que se expressa através de uma autonomia que se mantém sistematicamente sujeita a outros seres e energias.

♦♦♦

Ana Maria Rodrigues Oliveira, licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa