NO VALE DO SWAT,
NOROESTE DO PAQUISTÃO (i)
Hora do silêncio, do luar e dos fantasmas, da profunda e absoluta Identidade…
Através do meu ser, mais vago do que o éter, gravitam as estrelas e os sonhos, palpitam brancas asas de Anjos, negras asas de Demónios, nublosas formas transparentes, que são árvores, flores, criaturas na sua ancestral quimera!
Hora da infinita Lembrança de Tudo…
Hora da sombra, do silêncio, hora da morte, quando a luz do nosso olhar se casa com a luz dos astros e vem fazer o nosso dia!
Ao luar das horas mortas, passeio no jardim; e os meus olhos povoam-se de imagens…
E neles representam a Divina Comédia, desde o seu estado corpóreo e demoníaco à sua nova e sagrada pessoa imaginária.[i]
INVOCAÇÃO DOS CÍRCULOS MÁGICOS
I
As montanhas do vale do Swat estão imbuídas de uma aura mágica que atravessa gerações. São muitas as histórias que envolvem as cordilheiras dos sonhos. Revestidas de quiméricas abstrações, enfeitiçam a imaginação dos homens. Decido-me a traduzir os diálogos fantasiosos entre estas montanhas, antropomorfizadas pelos meus devaneios inusitados, e os fantasmas que assombram a escuridão das noites.
O mistério que precinge este lugar é inelutável. Numa viagem aos confins de mim mesma, a montanha, símbolo axial e medula incorpórea, enlaça a terra e os céus. Quase que lhe pressinto a pulsação, nas profundezas das raízes que se misturam com o suor e as lágrimas da humanidade. Escuto os diálogos em sussurros dos seres que por aqui passaram. Os espíritos do lugar, esconjurados, bramem biografias abatidas pelo tempo.
O antropólogo surge assim como um médium que dá voz ao invisível. Numa ininterrupta séance, os aulidos do transcorrido ganham vida no seu corpo. Psicografias etnográficas. Ectoplasmas que irrompem por entre os estomas das montanhas e reverberam nos seus olhos assombrados. Intérprete assíduo das máscaras de morte que desfilam neste teatro fantasmagórico.
II
Eu gosto de deitar-me no telhado da casa, enquanto roubo às estrelas as sombras dos seus sigilos mágicos que dançam nas minhas entranhas, cânticos cósmicos. Esvaio-me em possessões onde se esboçam nos meus ossos espectros de nácar nascidos das minhas lágrimas cauterizantes. Sepulturas inertes que excogito nas minhas mãos e onde florestas crescem e tocam os meus pés exauridos. O fogo da minha alma dissolve-se assim no oceano dos seres invisíveis. No passado, até o arco-íris era um monstro com máscaras incrustadas de pedras carmesins e verdes. As crianças protegiam-se das suas sombras cobrindo a cabeça com véus, recusando-se a enfrentar o mau augúrio que respirava no olhar destes monstros.
III
Esta noite, recebo as respirações das montanhas num ritual mágico: os fantasmas exorcizados são lançados na escuridão fria. Esvoaçam através das minhas veias, pássaros amargos com as suas plumagens de tristezas negras, cantando estilhaços de horrores. Nos céus invertidos existem tempestades invisíveis aos outros; reflexos do Divino nas águas profanadas da minha alma e nas quais ondulam ruínas na ininterrupta rememoração de uma antiga Destruição. Existem mundos intangíveis espelhados nos olhos. Existe a dor enterrada, cravada nas linhas das minhas mãos; nos rios do destino e montes nebulosos que tantas vezes tentei incendiar. Existem rostos ausentes: espectros ocultos circundando por entre os ventos do meu corpo. Deixo a lua selvagem submergir no sol do meu ser, eclipsando os fantasmas feridos, que deslizam por entre as cicatrizes de flores da minha pele. Deixo a lua primordial submergir as marés escuras, dissipando-se por entre as paredes de fogo das montanhas.
Os sonhos permanecem em cavernas vazias, guardados por fantasmas gigantes. E o silêncio reina por entre os vales desembarcados. No espelho manchado por fragmentos de vermelho-fogo, respiram as quimeras dos nossos reflexos: promessas de jardins, que são agora apenas ocasos de auroras. Os traços dos nossos rostos, infetados e destruídos, são sóis de carvão que nos queimam, trazendo as trevas aos nossos mundos imóveis e febris.
IV
Árvores-vida brotando de túmulos-morte. As pedras brancas ornamentadas com cingidouros fulvos e pretos, abraçando os troncos robustos que se erguem rumo a um infinito. Imagino que dos seus ramos pendem as memórias destes cadáveres; folhas arrancadas ao livro da vida e grafadas em tintas invisíveis. Tormentos alegres de milhares de anos de árvores-lua, que apenas os ascetas das montanhas conseguem ler.
V
O renascimento de espelhos-necromantes nas margens das sagradas florestas de almas.
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[i] Texto originalmente publicado na Revista Flauta de Luz: Revista de Crítica da Cultura, No. 5, ed. Júlio Henriques, maio de 2018 (ISBN: 0000017747899), pp. 222-224.
[i]ITeixeira de Pascoaes, Senhora da Noite. Verbo Escuro (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), p. 146.
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Ana Tomás tem um mestrado de Sciences Sociales – Mention Asie Méridionale et Orientale (AMO), pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França (2011). Doutoranda em Anthropologie Sociale et Ethnologie, École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e o Centre d’Études de l’Inde et de l’Asie du Sud (CEIAS), Paris, França. Foi bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Governo de Portugal (2012-2015). Fez trabalho de campo em Hazar Khwani, Peshawar, e no Vale de Swat, Província de Khyber-Pakhtunkhwa, noroeste do Paquistão.
Atualmente, trabalha também como consultora de investigação (avaliação de terreno e pesquisa; monitorização e avaliação de projetos; e elaboração de notas conceituais de subvenções).
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