A primeira grande exposição de desenhos do conhecido artista português Cruzeiro Seixas ocorreu em 1953 em Luanda, cidade onde viveu 14 anos. Foram 48 desenhos. Quatro anos depois fez outra, sempre na capital angolana e, um desses desenhos foi-me por ele oferecido em 1959 ou 60, transformando-se em símbolo do apoio que deu ao nosso grupo estudantil clandestino.
Eramos um dos muitos grupos nessas condições na Angola pré insurrecional. Na verdade, círculos de amigos, tertúlias, colegas de escola e até de clubes desportivos ou frequentadores das mesmas igrejas, improvisaram células e a campanha do general Humberto Delgado às “eleições” portuguesas de 1958 foi mais um estímulo. O movimento tinha dois canais: a ação cultural, com subida na produção literária e artística (trabalho muito assente na Sociedade Cultural de Angola, no Cine Clube de Luanda, na editora Imbondeiro do Lubango e na Casa dos Estudantes do Império, sedeada em Lisboa, com repercussão direta em Angola); a difusão de panfletos clandestinos, datilografados ou mimeografados.
Nos últimos anos do ensino secundário – não havia universidade em Angola – a movimentação fez-se sentir nos dois campos Assim, um grupo de alunos do Liceu e da Escola Comercial, frequentadores da Sociedade Cultural e do café “Monte Carlo”, entrou em contacto com intelectuais angolanos anti-colonialistas, como Adolfo Maria e António Cardoso os quais, ao serem presos pela PIDE mais tarde, foram acusados de “subverter os mais novos”.
Exposições de pintura, gravura e desenho tinham lugar, abordando temas populares nacionais e, numa dessas exposições, conheci Cruzeiro Seixas, que morava na Maianga (tradicional bairro da baixa luandense) desde 1952. Se bem me recordo, a conversa estabeleceu-se em torno da temática dos quadros e da falta de liberdade de criação e expressão, aspeto decisivo para os contactos seguintes. Rapidamente criou-se um clima de confiança mutua – essencial em ambiente repressivo – e Cruzeiro Seixas passou a contar-nos histórias da resistência na segunda Guerra Mundial e mostrou-nos alguns panfletos que tinha guardado dos tempos do Movimento de Unidade Democrática (MUD) em Portugal.
Esses panfletos deram-nos várias ideias para fazer os nossos próprios. Até então, a nossa atividade consistia em difundir qualquer panfleto de qualquer grupo ou movimento, inclusive textos enviados por exilados na Europa ou no vizinho Congo, onde no começo de 1959 tumultos violentos irromperam, com alta repercussão em Angola.
Cerca de meados desse ano, já com dezenas de militantes presos e a maior parte dos pequenos grupos dizimados, batizamos a nossa célula de Movimento Democrático Estudantil, fizemos alguns pequenos textos e iniciamos a busca de instruções sobre lutas armadas e técnicas de clandestinidade.
As duas exposições de Cruzeiro Seixas ocorreram com esse processo em fase final de gestação. A primeira decorreu numa sala do cinema “Restauração” (o maior da cidade), na qual existia um enorme quadro agressivamente racista. Com a ajuda da mãe, Cruzeiro Seixas cobriu esse quadro durante todo o tempo da exposição dos seus 48 desenhos. A segunda, já sem esse problema, localizou-se no então Museu de Angola, hoje Museu de História Natural.
As nossas conversas com Cruzeiro Seixas evoluíram para o quadro explícito da luta pela liberdade, com uma particularidade: ele dava-nos atenção, ao contrário de outros “mais velhos” que, naturalmente, não confiavam muito em nós devido à nossa baixa idade, entre os 15 e os 17 anos. Era uma característica da “clandeca” kaluanda da época e, quando ocorreu o chamado “processo dos 50”, muitos dos presos tinham cerca de 20 anos e estavam ativos desde há dois ou três anos. Cruzeiro foi sempre muito discreto e nunca perguntou sobre a ação que desenvolvíamos, mas continuava a dar-nos indicações e insistia nos conselhos de precaução.
Em final de 1959 ou início de 1960, após uma das nossas trocas de impressões sobre o dia a dia angolano e a influência africana na sua obra, ofereceu-me o quadro que recebi como símbolo dessa cooperação, prometendo-me a mim mesmo um dia retribuir-lhe com algo produzido por mim.
Então veio a guerra e tudo isso foi interrompido, até porque a maior parte de nós teve de exilar-se. O quadro ficou numa parede em minha casa (na Vila Alice, bairro então situado nos limites da “fronteira de asfalto”) e, anos depois, na fronteira congolesa, relembrei-me dele com uma certa preocupação, pois soube que um agente da PIDE tinha passado lá em casa e podia interrogar-se sobre a presença do quadro. Mas não reparou e, entretanto, (soube depois) Cruzeiro Seixas voltou a Portugal em 1964.
Quando regressei a Luanda após o 25 de abril, a intensidade do trabalho na transição e depois na nova guerra, mantiveram-me longe de casa e, portanto, do quadro. Mas familiares meus guardaram a obra e, quando se foram embora, levaram-no para Portugal. As guerras angolanas do século XX (com uma breve entrada no XXI) acabaram e os familiares protetores entregaram-me o quadro em perfeito estado, fazendo reviver uma já muito longínqua década. O quadro viajou no sentido inverso, atravessou o Atlântico e saí à procura do Cruzeiro Seixas que finalmente localizei, agora com mais de 90 anos na Casa do Artista, em Lisboa. A mesma voz, a mesma lucidez e rapidez de raciocínio, mas com sérios problemas de visão e audição.
“Pensei que Angola tinha-se esquecido de mim” disse no nosso reencontro, onde fizemos balanço de coisas (bem ou mal) passadas e ele teceu algumas considerações sobre o quadro, que tem no canto inferior direito a frase “local de encontro com o Zé e os outros”, para testemunhar uma amizade com efeitos combativos. Reproduzi-o na edição portuguesa do meu testemunho “Franco Atiradores”.
Nesse dia, antes de sair da Casa do Artista em Lisboa, ofereci-lhe o meu mais recente romance, como retribuição pela oferta do quadro décadas antes. Desculpa, Mestre, ter demorado tanto a retribuir mas é que tive duas guerras – e muita clandestinidade – pelo meio.
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Jonuel ( de José Manuel ) Gonçalves, economista angolano, atualmente no Brasil concluindo pesquisa pós doutoral sobre ascensão e crise de economias emergentes dos dois lados do Atlântico Sul. Vários livros publicados com edições em Angola, Brasil e Portugal, ficção e não ficção. Em Portugal, não ficção: “Franco Atiradores”, “E se Angola tivesse proclamado a independência em 1959?”; romance: “A Ilha de Martim Vaz”.
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