(inspirado em um poema de Olavo Bilac)
Viu-a só uma vez. De relance. Loura, luminosa, clara. Cabelos cacheados emoldurando o rosto de menina, um olhar perdido, que num primeiro momento parecia estar focado sobre ele. Mas foram segundos. Passou pela frente da casa, retardando um tanto a caminhada – quem sabe ela voltava para mais um ligeiro estar abandonada sobre os cotovelos, na janela da casa bonita, bangalô florido, da Rua dos Ingleses. Não veio. E ele não teve mais como se demorar pela vizinhança. Podia ser tido como um malfeitor que espreita as casas para de noite roubar. Preferiu ir embora.
No dia seguinte não pôde passar pela frente do bangalô. Urgências profissionais o chamaram para outros bairros, outras cidades. Era um técnico prestigiado, tinha muitos e muitos chamados que atender, e atendia-os todos, sim senhor, pois não. Simpático e eficiente, era um gosto ser servido por ele. E o trabalho se avolumava. Mesmo entretido, porém, sempre encontrava tempo de pensar na linda e sedutora imagem da moça, na janela.
Foram-se três semanas, quando soube que teria um domingo de folga. Sentiu aquecer-se-lhe o coração, na expectativa de passear pelo bairro da Bela Vista. Quem sabe conseguiria seguir pela calçada, mãos nos bolsos, assobiando calmamente como quem não tivesse mínima preocupação nesse mundo? Quem sabe ela estaria ali, posta em sossego, bela e calma, loura de luz, e ele poderia lhe dizer bom dia, falar do calor causticante de janeiro, desejar-lhe um excelente domingo? E ela, ao lhe responder, não lhe daria, quem sabe, abertura para num outro domingo futuro saber-lhe o nome, falar um pouco de si. E, assim, ia gulosamente construindo, na mente, a mesma estrutura da fábula do menino que foi à feira vender uma dúzia de ovos e no caminho sonhava com uma granja. Nessas aventuras romanescas nem dormia direito, ansioso, ansiando. E a semana demorou-se décadas a chegar.
Mas chegou o domingo, afinal. Sempre chega.
Os ovos da fábula se quebraram e foi-se a granja esparramada em cacos. A casa, vazia e fechada, com a tabuleta de “aluga-se”, fez ruir anjos, sorrisos e sonhos de uma só vez.
Nunca mais aquela imagem de anjo abandonou-lhe a lembrança. Ainda mais agora, inatingível, desaparecida na neblina, mais desejada era. Mas se recompôs. Era um profissional requisitado, tinha que trabalhar e ao trabalho se entregou, contente como pôde, resignado muito. Não demorou para que fosse transferido para chefiar a subsidiária da empresa no Nordeste. Foi um sucesso a empreitada. Desiludido de encontrar amor, dedicava-se integralmente aos clientes. Evoluiu. Ganhou dinheiro. Aos poucos permitiu-se primeiro uma manhã de praia, depois um forró no salão do Alfredo, onde beijou algumas bocas, brincou de ser feliz. Teve até uma parceira de danças, a Gabriela simpática e delicada. Não a pôde amar, no entanto, porque amava um anjo louro desaparecido por detrás de uma moldura. E a vida seguiu seu curso.
Perto de outro janeiro voltou para São Paulo. Chamavam-no para um novo projeto na matriz. O planejamento foi um desdobramento de noites laboriosas que ameaçavam invadir as festas de fim de ano. Não se importava. Não tinha ninguém, nem era pra se incomodar. Hum… não era bem assim. Sentia saudades de carinhos, queria ter a quem dar satisfações, com quem tivesse horários para cumprir no esmero da arrumação de uma casa. Uma bela noite decidiu que precisava de um divertimento.
Arrumou-se, sem muito ânimo, e foi até a Estrela do Forró, um ponto de encontro de nordestinos bem-sucedidos, mas expatriados na capital bandeirante. De certo modo precisou se esforçar para não desistir de entrar, porque o som estava alto, porque não se considerava de humor adequado para festa. Mas acabou entrando. E qual não foi sua alegria ao encontrar, numa das primeiras mesas, a disponível Gabriela amiga. Fez-se um arco-íris, subitamente, unindo os dois. Abraçaram-se, dançaram muito, e acabaram a noite sentados na calçada do bar fechado, vendo amanhecer o dia e trocando confidências. Enamoraram-se. Namoraram-se.
A dois dias do Natal, Gabriela pediu a ele que fosse encontrá-la em tal e tal lugar. Claro que iria. Trabalhou na véspera até mais tarde, para deixar tudo pronto. Foi para casa, tomou banho demorado e se deixou ficar um tempo em solidão, com seus pensamentos, imaginando como a vida carrega com a gente para onde quer. Abanou tentações do passado que começaram a assaltá-lo, arrumou-se e saiu.
Viu Gabriela ainda mais linda sem o rabo de cavalo que sempre usava. Estranhou a impressão que teve ao reencontrá-la e de como essa moça o arrebatara tão de repente, num bar de forró, depois de tanto tempo que a conhecia. Era paulista e fora morar no Nordeste para cuidar de uma parenta doente que, para encurtamento do sofrer, morrera. Chegou-se a ela, enlaçou-lhe a cintura com imenso carinho e abraçou-a longamente. Ela quis passear. A pé, a noite está gostosa. Vamos andando por aí. Foram.
Surpreendeu-se quando a caminhada foi interrompida na Rua dos Ingleses. Havia gente na rua, esperando o sinal para se organizarem em fila para a primeira sessão de teatro. A tarde caía e o crepúsculo tingia os telhados das velhas casas de um vermelho claro cor de tijolo. Surpreendeu-se mais quando ela parou diante daquele bangalô que ele conhecia bem. Empurrou o portão, com uma chave na mão, e deixou-o para trás. Abriu a porta e fechou-a atrás de si. Ele ficou atônito, buscando significado para aquilo tudo. Compreendeu, de repente.
Gabriela apareceu, na janela, sorriu para ele e se pôs a fitá-lo, com interesse. E disse:
– Eu sempre soube quem era você. Mas você estava tão apaixonado pelas suas lembranças que nem reconheceu a moça que o amou desde que o viu passar diante desta janela.
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Joaquim Maria Botelho, jornalista e professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP e especialista em Jornalismo Internacional pela Universidade de Wisconsin, EUA. Foi presidente da UBE – União Brasileira de Escritores por três mandatos, entre 2010 e 2015. Tem 9 livros publicados. Conta com artigos e contos publicados na Alemanha, Argentina, Brasil e Portugal.
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