O poema como um orgasmo após outro numa produção fordista.
Não posso mentir, não sou o melhor amante. O pior de tudo é a cadência como uma adição monótona. E o silêncio cúmplice das expressões, o rosto imutável, a pele tão só morna e suave. Repetir que não é possível chegar mais longe, ficar num beco obscuro, estreito e húmido sem apenas uma saída certa. Perguntar mais uma vez por que o verso não chega ao final da página. Ganhar distância com cada palavra, criar a voz com as falanges entre as folhas, passando de vagar, construindo um desejo que não se vê mais cumprido. O poema é a imagem reflectida no espelho onde se procura o próprio prazer, o amor, a beleza que o corpo acredita ausente. O poema são os outros, aquele não lugar que construíram para nós, para o eu que sou apenas uma sombra dele e o espelho como instrumento, a página que fica em branco, imaculada, com a sua voz percutindo sobre os tempos para dizer que precisa ser desflorada e não ser assim a virgem que fica deitada com as pernas abertas, aguardando o poema que nasce sem o contacto prévio, sem o aroma dos fluidos que impregna os genitais. Não, não quero morrer assim, sem o berro desesperado, sem rachar a página debilitada pelo cuspe e as lágrimas. Desejo morrer com a pequena morte aprofundando como um cancro que se expande, que se nutre do próprio ser. Assim, como a voz que não mingua e repete: assim, assim, assim mais uma vez.
♣♣♣
Aguardei a tarde toda
ao tempo que Thel anunciava: «Charlie, eu nunca te amei de verdade mesmo»
e Charlie replicava «Eu nunca deixei de amar-te, Thel»
Esse tipo de confissões ditam os impulsos
e a prudência recomenda que é preciso não os contradizer.
«Estou preparado para fazer uma pequena matança por minha conta»
Medrando sob as calças os impulsos tiveram a vontade de desouvir meu mandado.
«Tu és William Blake, um poeta, um pintor e agora um matador de homens brancos»
Ele perguntou se sabia usar essa arma.
Não soube que responder.
Sempre considerei importante definir o contexto.
O uso dessa arma fora do contexto adequado é que constitui o delito.
Fizeras planos para nós,
desejavas criar o contexto adequado.
Aguardei a tarde toda suportando o impulso,
a vontade de fazer uma pequena matança por minha conta.
Aguardei a tarde toda
contando os minutos.
♣♣♣
Não volverei para mostrar as cicatrizes ainda que elas fiquem arrumadas e prontas para o uso. O poema que medra sob as calças não tem nome, é outra forma de morrer devagar como quem aguarda. Uma história, uma perspectiva que fita desde longe, uma defesa passiva, a vontade de escutar e não dizer, a crença de que tudo é mutável e o tempo que resta para a mudança. O poema és se te mostras ausente, se escreves com uma faca no peito dos inocentes as palavras que compõem o poema, marcando as sílabas com demorada insistência, como se a dor fosse um recurso necessário e ele só um jeito de provocá-la. Derramo os versos que resvalam pela coxa, quentes e húmidos. Centras a atenção no meu gesto que contrai o rosto. Sou apenas um nome, a silhueta do poema que fica esquecido no guardanapo de qualquer bar com a marca dos teus lábios gravada na memória. in "A chuva que derrete o mármore até chegar ao cadáver." Livros de Ontem. 2016
Alberte Momán Noval. Ferrol. 1976. Escrevo por acaso. Esses acasos que acontecem quando não se tem claro o caminho certo. No meu primeiro livro, O lobo da xente (Positivas. 2003) falava sobre mim e no meu último, Tripas (Belagua. 2017) também falo sobre mim, pelo que acho que levo toda a vida escrevendo o mesmo livro. Acredito na ideia de que algum dia deverei cambiar de tema o abandonar a escrita.
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