Fotos: de Lourdes Ximenes
Do Enfado
Enfadado o bastante para escrever,
Dou por mim escrevendo
Sobre o enfado que é escrever
Quando enfadado se está.
Suspendo pois o gesto da escrita
Na procura de, para o enfado afastar,
Achar palavra afim para rimar.
É um esforço que se deve tomar em conta
Sem menosprezo de se achar coisa pouca,
Que o enfado quando cai sobre o verso
Tudo remói e vira adverso.
Do enfado pouco adianta
Alongarmo-nos na sua descrição.
Quer seja tédio que aborrece
Ou neura que amortece
O cismar nisso apenas acresce
O enfado de pensar
o pensamento de escrever
sobre o enfado que é
quando enfadado se está.
São amenas as tardes
São amenas as tardes
em que, tendo muito para fazer,
me enrosco fazendo de gato,
no lado esquerdo do sofá.
O gato, o verdadeiro,
o gato mesmo, aquele que por o ser,
não necessita de se fazer passar por gato,
protesta enfadado, que aquele lado do sofá é dele,
e que lhe pertence porque é seu o direito
de escolher o lado do sofá, ou outra coisa qualquer.
Como é fácil de ver, aliás, pelo facto de ser gato.
E mais ainda: de que se não tivesse
esse natural privilégio, não seria gato.
Desentendido de tais razões,
surdo a justificação de gato,
faço valer a minha pretensão de bárbaro.
E então o gato condescende e, devagar,
com o vagar que apenas o gato sabe ter,
retira-se com o passo estudadamente hesitante,
mas não sem antes me lançar um olhar furtivo,
a desprezar caça ou a desdenhar desejo.
PORTO
Não foi por nada nem por coisa alguma.
Apenas um final de tarde em que uma luz parda
caiu sobre as mesas alinhadas do café
a lembrar que era hora de sair.
Avizado das artimanhas do crepúsculo,
fecho brevemente os olhos
a imprimir num esconso sem nome
pensamentos de névoa e ilhas recobertas de bruma.
Ou alvas espáduas de luares
nos mares do sul.
São tristes os cafés do porto
nos fins de tarde em agosto.
É a tristeza do abandono
e da deserção dos dias. Do burburinho
dos amigos e amores na cabeça.
Da vertigem de livros que gostaríamos
que não terminassem nunca.
E que fossem sempre assim.
Porque assim é que devia ser.
São tristes os cafés do porto
nos fins de tarde em agosto.
Dobro o canto da página do livro
e deixo no tampo da mesa as moedas
certas do café de toda a tarde.
Como coisa sobre a qual não se tem controlo,
algo em mim se abate com um desalento
de gestos repetidos à exaustão.
E, sem que necessário fosse pôr-me a caminho,
como coisa real que caminha realmente,
estou já em mim na cândido dos reis
a antecipar ladeira com nome de nery.
Não sei se o haussmann passou por aqui.
Mas eu, que agora penso nele,
contento-me de o pensar a passear por aqui
a abeirar-se em passeios largos.
Como se fossem varandas de olhar para cima.
Sobranceiro, o nazoni mira-me o passo
desencontrado. Sim, está bem,
um dia hei-de ir lá acima, a
ver o que do porto se vê que
habitualmente não se vê.
Da boavista, leão e águia, cansados
da rigidez de pose a ver se um dia viram um.
Como bicho da babilónia.
Da foz e mais além.
Suspeito que a torre se inclinou ligeiramente
a dar sinal de compartilho
de assentimento cúmplice, a acenar quietudes
de pedra às estrelas ou às marés.
Não é longe aonde tenho que ir.
É chegar a um largo antigo.
Antigo como os passos em volta
Ou o apelo da infância que vem do rio
E que sobe e não nos abandona nunca.
Caiu-me um pássaro na sopa
Caiu-me um pássaro na sopa
num dia esmaecido
em que o sol turvo e pardo
pardo e turvo acendia
a língua num sopro de espanta-espírito
Caiu-me um pássaro na sopa
e num golpe de asa rasante
navega-me a orelha
em aquosa substância no prato fundo
a humedecer pasmos de vagaonda
numa colher basculante
a debicar miolos de pão.
Caiu-me um pássaro na sopa
e todo ele era leve
como poeira de pedra-pomes
urze e cinza sobre manhãs
sem sombra nem fim
Caiu-me um pássaro na sopa
e era transparente como os futuros
que nos pomos a adivinhar
quando soletramos estranhos vocábulos
ou nos gestos rigorosamente imprecisos
da mecânica amorosa dos corpos
procuramos a gramática do mundo
Caiu-me um pássaro na sopa
e era um torpor que anuncia o sono
uma simpatia breve intensa porém
trouxe-me ao pensamento
espelhos e maceradas estátuas de sal
Suaves filigranas em forma de tempo
a percorrer em aragem as ilhas da terra
Caiu-me um pássaro na sopa
e fez-se noite
Perséfone
Em quieto alvoroço aguarda Perséfone
Pelo despertar das águas.
Sente-se já no ar os sons anunciadores
E a carne da terra convoca
A memória de outros começos.
Uma réstia de luz rompe a sombra do mundo
E a cativa eleva-se, liberta mas nunca enfim,
Do fruto por quatro vezes descoberta.
Tirésias
No dorso de uma borboleta
navega Tirésias em precário equilíbrio.
Avança e pára, volteia, indeciso.
E as manhãs são intermitências
no dentro das pálpebras.
Descansa agora sobre um espelho de água
a olhar o que ver não pode.
Tudo é sossego nos portões de Tebas.
Nada mexe na natureza e Tirésias,
absorto e desocupado, sem sombra de pecado,
vê mas não olha.
De nada padece e o futuro é limpo
como um dia de sol sobre o Egeu.
No dorso de uma borboleta
repousa Tirésias e não sabe.
*Imagens destaque de Lourdes Ximenes
♣♣♣
Fernando Martinho Guimarães
(1960)
Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e, em 2008, Crónicas.
(f_guimaraes@sapo.pt)
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