SEIS POEMAS – por Fernando Martinho Guimarães

 Fotos: de Lourdes Ximenes

Do Enfado

Enfadado o bastante para escrever,

Dou por mim escrevendo

Sobre o enfado que é escrever

Quando enfadado se está.

Suspendo pois o gesto da escrita

Na procura de, para o enfado afastar,

Achar palavra afim para rimar.

É um esforço que se deve tomar em conta

Sem menosprezo de se achar coisa pouca,

Que o enfado quando cai sobre o verso

Tudo remói e vira adverso.

Do enfado pouco adianta

Alongarmo-nos na sua descrição.

Quer seja tédio que aborrece

Ou neura que amortece

O cismar nisso apenas acresce

O enfado de pensar

o pensamento de escrever

sobre o enfado que é

quando enfadado se está.

 

São amenas as tardes

São amenas as tardes

em que, tendo muito para fazer,

me enrosco fazendo de gato,

no lado esquerdo do sofá.

O gato, o verdadeiro,

o gato mesmo, aquele que por o ser,

não necessita de se fazer passar por gato,

protesta enfadado, que aquele lado do sofá é dele,

e que lhe pertence porque é seu o direito

de escolher o lado do sofá, ou outra coisa qualquer.

Como é fácil de ver, aliás, pelo facto de ser gato.

E mais ainda: de que se não tivesse

esse natural privilégio, não seria gato.

Desentendido de tais razões,

surdo a justificação de gato,

faço valer a minha pretensão de bárbaro.

E então o gato condescende e, devagar,

com o vagar que apenas o gato sabe ter,

retira-se com o passo estudadamente hesitante,

mas não sem antes me lançar um olhar furtivo,

a desprezar caça ou a desdenhar desejo.

 

PORTO

@Lourdes Ximenes

Não foi por nada nem por coisa alguma.

Apenas um final de tarde em que uma luz parda

caiu sobre as mesas alinhadas do café

a lembrar que era hora de sair.

 

Avizado das artimanhas do crepúsculo,

fecho brevemente os olhos

a imprimir num esconso sem nome

pensamentos de névoa e ilhas recobertas de bruma.

Ou alvas espáduas de luares

nos mares do sul.

 

São tristes os cafés do porto

nos fins de tarde em agosto.

É a tristeza do abandono

e da deserção dos dias. Do burburinho

dos amigos e amores na cabeça.

Da vertigem de livros que gostaríamos

que não terminassem nunca.

E que fossem sempre assim.

Porque assim é que devia ser.

São tristes os cafés do porto

nos fins de tarde em agosto.

 

Dobro o canto da página do livro

e deixo no tampo da mesa as moedas

certas do café de toda a tarde.

Como coisa sobre a qual não se tem controlo,

algo em mim se abate com um desalento

de gestos repetidos à exaustão.

E, sem que necessário fosse pôr-me a caminho,

como coisa real que caminha realmente,

estou já em mim na cândido dos reis

a antecipar ladeira com nome de nery.

 

Não sei se o haussmann passou por aqui.

Mas eu, que agora penso nele,

contento-me de o pensar a passear por aqui

a abeirar-se em passeios largos.

Como se fossem varandas de olhar para cima.

Sobranceiro, o nazoni mira-me o passo

desencontrado. Sim, está bem,

um dia hei-de ir lá acima, a

ver o que do porto se vê que

habitualmente não se vê.

Da boavista, leão e águia, cansados

da rigidez de pose a ver se um dia viram um.

Como bicho da babilónia.

Da foz e mais além.

Suspeito que a torre se inclinou ligeiramente

a dar sinal de compartilho

de assentimento cúmplice, a acenar quietudes

de pedra às estrelas ou às marés.

 

Não é longe aonde tenho que ir.

É chegar a um largo antigo.

Antigo como os passos em volta

Ou o apelo da infância que vem do rio

E que sobe e não nos abandona nunca.

@Lourdes Ximenes

 

 

Caiu-me um pássaro na sopa

Caiu-me um pássaro na sopa

num dia esmaecido

em que o sol turvo e pardo

pardo e turvo acendia

a língua num sopro de espanta-espírito

Caiu-me um pássaro na sopa

e num golpe de asa rasante

navega-me a orelha

em aquosa substância no prato fundo

a humedecer pasmos de vagaonda

numa colher basculante

a debicar miolos de pão.

Caiu-me um pássaro na sopa

e todo ele era leve

como poeira de pedra-pomes

urze e cinza sobre manhãs

sem sombra nem fim

Caiu-me um pássaro na sopa

e era transparente como os futuros

que nos pomos a adivinhar

quando soletramos estranhos vocábulos

ou nos gestos rigorosamente imprecisos

da mecânica amorosa dos corpos

procuramos a gramática do mundo

Caiu-me um pássaro na sopa

e era um torpor que anuncia o sono

uma simpatia breve intensa porém

trouxe-me ao pensamento

espelhos e maceradas estátuas de sal

Suaves filigranas em forma de tempo

a percorrer em aragem as ilhas da terra

Caiu-me um pássaro na sopa

e fez-se noite


Perséfone

Em quieto alvoroço aguarda Perséfone

Pelo despertar das águas.

Sente-se já no ar os sons anunciadores

E a carne da terra convoca

A memória de outros começos.

Uma réstia de luz rompe a sombra do mundo

E a cativa eleva-se, liberta mas nunca enfim,

Do fruto por quatro vezes descoberta.

 

Tirésias

No dorso de uma borboleta

navega Tirésias em precário equilíbrio.

Avança e pára, volteia, indeciso.

E as manhãs são intermitências

no dentro das pálpebras.

Descansa agora sobre um espelho de água

a olhar o que ver não pode.

Tudo é sossego nos portões de Tebas.

Nada mexe na natureza e Tirésias,

absorto e desocupado, sem sombra de pecado,

vê mas não olha.

De nada padece e o futuro é limpo

como um dia de sol sobre o Egeu.

No dorso de uma borboleta

repousa Tirésias e não sabe.

 

*Imagens destaque de Lourdes Ximenes

♣♣♣

Fernando Martinho Guimarães 

(1960)

Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e, em 2008, Crónicas.

(f_guimaraes@sapo.pt)