(Conto inspirado no poema “Tabacaria” de Álvaro de Campos.)
Bizarro. Murmuro enquanto olho para a biqueira dos sapatos. Finjo que não o vejo enquanto como os chocolates que compro todas as sextas-feiras na Tabacaria. Quantos são? São dois, respondo e o dono da Tabacaria coloca-os dentro de um cartucho de papel pardo. Bizarros, os olhos do homem da mansarda que me espreitam por detrás dos óculos redondos. Tive uma tia, de voz estridente, a quem os erres saíam enrolados. Para essa minha tia era tudo bizarro. Dizia-o com aquele arranhar supérfluo e trôpego de quem não sabe bem o que a palavra quer dizer. Bizarro. Vejo-o de olhar debruçado sobre nós. Sobre mim. E estremeço. Abro o cartucho. Cada chocolate vem embrulhado em papel de prata, papel que depois a minha mãe alisará cuidadosamente com o polegar. É para marcar os livros, dirá. Mas ela nunca lê. Limpo o canto da boca e o homem da mansarda olha-me com o olhar baço de quem pensa noutra coisa. É doido, dirá a minha mãe quando estiver a alisar a quase prata, que afinal é estanho, ao som do que lhe eu lhe relato. Não o acho doido. Nem louco. É apenas o bizarro homem da mansarda. E, tal como a minha tia, enrolo a palavra na minha boca procurando o nome dele, que não conheço. Dizem que escreve poemas. Não me escolherá um homem que saiba fazer versos. O que me escolherá será decerto um homem pardo, de palavras de fazenda barata. Na minha rua a ambição dobra-se nas gavetas do enxoval antes que chegue a humidade dos versos e dos outros delírios. Na minha rua a poesia ganha depressa cheiro a bafio. Guardo o chocolate que sobrou. Para a minha mãe. Devias poupar para comprar pano para o enxoval, dirá. Mas o pano de linho tem uma aspereza que o chocolate não tem. O chocolate aquece-me, macio, a ausência que tenho de versos. O homem sorri, não sei se para mim. Nem sequer se a boca, que imagino de cera, realmente sorri. Recolho os olhos na biqueira dos sapatos enquanto o dono da Tabacaria, que veio à porta, me pergunta. Conheces? Digo que não. Mas intriga-me. Daquele intrigar sem medo. Não, não conheço. É apenas o homem bizarro da mansarda.
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Cristina Nobre Soares é copywriter e contadora de histórias. O que significa que escreve e muito. Pelo meio, também ensina as pessoas a comunicarem e a expressarem, principalmente aquilo que não dizem por acharem que não encontram as palavras certas.
Cristina tem um livro de contos publicados e quilómetros de palavras escritas, que partilhou com outras formas de arte, como por exemplo o teatro, a dança, a pintura, a fotografia e a ilustração.
Um dia, disseram-lhe que ela era uma recolectora de migalhas de poesia. Talvez seja isso que no fundo Cristina seja.
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