Ultimamente, Phelps andava muito taciturno. Estranhos pensamentos perturbavam-no.
Nos dias cinzentos, a sua depressão acentuava-se. Estava sempre intratável. Tudo o irritava. Esquecia-se de tudo e, com frequência, perdia a noção do tempo real. Falava sobre coisas do passado como se estivessem a acontecer no momento. Fisicamente aparentava estar bem. Não tinha a mínima consciência do seu declínio mental.
O homem que fora — culto, sabedor, activo, “bon-vivant” e óptimo companheiro, às vezes folgazão —, era agora um espectro de si próprio. Já não sorria, nem ria. O seu olhar, ora mortiço, estava sempre alheio a tudo. Fechava-se, cada vez mais, em si próprio… Não lhe interessavam as viagens, as leituras, a música, o teatro e demais manifestações culturais e artísticas, ou seja, tudo o que sempre apreciara. Também não ia aos repastos com os amigos.
Presentemente, era como um vestido de “toilette” que se transformou em farrapos. Sim, Phelps era um farrapo. Todos os que o conheciam e com ele conviveram sentiam um mal-estar com a sua presença. Era um desconhecido! Passava grande parte do dia sentado, olhando sem ver, cogitando e construindo, mentalmente, impossíveis. O seu ponto de partida eram as recordações da infância e adolescência. Lembrava-se do Principezinho, com a sua rosa e, se porventura, colhesse uma, imaginava-se a voar pelo espaço e a observar a Terra lá do alto; nessas ocasiões, esboçava um sorriso… Quem o visse diria: ali está um homem feliz.
Mas se à memória vinham os heróis de Dickens, depressa caía no habitual mutismo. Outras vezes inseria-se no mundo de Sherlock Holmes e a sua expressão ganhava um tónus de seriedade e concentração. Raramente, escutava Beethoven, Mozart, Liszt, Bach, Tchaikovsky, Verdi ou Chopin, nos poucos momentos em que estava menos desassossegado. Adorava Paganini. O som do violino era para ele tonificante: sempre fora o instrumento que teria desejado saber tocar. Muitas vezes relia alguns clássicos nacionais e estrangeiros. Os romances americanos e sul-americanos eram os seus preferidos. Mas a poesia tinha um particular destaque e, sempre que lia um poema, lia-o em voz alta. Porém, estes breves momentos de relaxe davam lugar à abstração da realidade. Enclausurava-se no seu mundo peculiar ou, antes, apartava-se do real, do presente. Então ficava apenas sentado, hirto, olhando o vácuo, onde nada é visível. Nestas ocasiões transformava-se no espectro que era. Phelps vivia uma vida diferente, tão diferente que ninguém, nem ele, entendia, ou percebia.
O declínio mental iniciara-se há quinze anos. Doenças, faltas de dinheiro, perda de qualidade de vida, de entes queridos, desgostos e a descrença, cada vez maior, num futuro sempre adiado, contribuíram para o turbilhão de pensamentos que o assolava.
A sociedade actual, decadente de valores e apologista dos bens materiais, desgostava-o e causava-lhe grande sofrimento, de tal modo que, descrente de tudo, se tornou no farrapo que agora era. Este processo ao longo dos quinze anos, teve como resultado um estado de catatonia. Já não filosofava. Não lhe interessavam as questões metafísicas. Já não sabia pensar, nem interrogar e discutir problemas que moviam as suas capacidades de análise e de síntese. Empregando uma linguagem de computador: deletara-se.
Dormia pouco; quase não comia. O seu lema era recordar, recordar, para fugir ao presente e não abordar o futuro.
Imaginava-se encarcerado num cubo. Esse cubo era transparente. Phelps via tudo, mas não era visto. O seu mundo fechado era muito próprio. Único.
Porém…
Num certo dia cálido de Verão, a luz solar encadeou-o e, segundo ele, teve uma visão que mudou radicalmente o seu comportamento e forma de estar.
Já não tinha corpo e flutuava no imenso espaço estratosférico. Percepcionou o Universo e observou todos os planetas como infinitésimos pontos. Só o brilho das estrelas cortava a escuridão que o rodeava. Em silêncio absoluto, as suas percepções permitiram-lhe apreender que a única verdade real estava no seu pensamento. Pouco importava se aquilo que via existia, ou não. Mas se ele via , então o seu mundo era real! E assim prosseguiu os seus dias, olhando para o infinito, sem falar, sem comer. Existia. Era um zombie pensante.
Numa manhã chuvosa, viu seca a rosa do Principezinho. Sorriu, acenou para o vazio e… feneceu!
Encontram-no passados dois meses. Seus ossos adivinhavam-se debaixo da pele ressequida e roxa mas, no rosto, notava-se o sorriso. Afinal Phelps partira feliz. Alcançara o seu Nirvana, via pensamento, que o alimentou nos seus longos anos de Peregrinação.
Alcançou a felicidade pela via da abstracção/observação de uma realidade para além do Real!
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Duarte Manuel da Silva Passos Klut (Duarte Klut), nasceu em Lisboa a 20 de Abril de 1942.
Professor. Licenciado em História, possui os graus de Mestre pela FLUP e de Doutorado pela U. Gama Filho, Rio de Janeiro. Aposentado desde 2004.
Tem publicadas as seguintes obras:
Um quase Diário de um quase Nómada (2005)
Versos…Perverso (2008)
Lucubrações — estados de Alma (2011)
Esmerilhando… Mundividências (2013)
Aporias (2014) e
O Inquieto e as utopias possíveis ( 2016)
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