EDITORIAL – O CORPO E O ESPÍRITO – por M. H. Restivo

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Conto do vigário, sem séria burla à mistura, sobre a existência e o seu contrário

O corpo é a nossa primeira e última realidade. Tendo todos direito à sua opinião como à sua religião, acreditamos que só há espírito porque há corpo e, por isso, se se vai o corpo, vai-se também o espírito. O espírito é o corolário desta realidade complexa a que chamamos corpo, segue-se dele, no princípio e no fim.

Do corpo e da sua sobrevivência derivam o bem e o mal, assim como o prazer e a dor, a alegria e a tristeza, a felicidade e o sofrimento. Apenas por preguiça e vistas curtas, têm os homens rejeitado um dos lados da díade, fornecendo ao seu par toda a veneração. Mas aquilo que veneráveis religiões e engenhosas filosofias falharam em descobrir, muito astutamente captou a sabedoria popular que, mais afoita a aceitar o que é do que a tentar corrigir os modos do mundo, percebeu que o sofrimento se tece com as mesmas linhas que tecem a vida, tendo, assim, afirmado que quem não quer sofrer, nasce morto; sofre de medo quem tem medo de sofrer; quem quiser vencer, aprenda a sofrer; a tudo se pode atrever, quem tudo sabe sofrer; e o clássico quem muito ama, muito sofre. 

Sendo o mal coisa penosa, é também ele parte da agridoce realidade da qual fazemos parte, e não vamos nós vilipendiar os caminhos que nos trouxeram a este mundo e que nos fizeram ser o que somos. Que cada um decida, se decidir alguma coisa é algo permitido aos homens, o que fazer com o seu próprio corpo. Não sendo este inteiramente coisa nossa, na medida em que não o planeámos nem lhe conhecemos os mecanismos profundos, está ele agora a nosso cargo, tanto para o bem, como para o mal, que, como se sabe, tendem a andar a par. De que valeria o bem se não existisse o seu contrário? E como saber o que é o mal, sem saber o que é o bem? E eis-nos perante um paradoxo: se o mal anda a par do bem, e o bem é uma coisa boa, então o mal também tem de ser uma coisa boa. No entanto, se algo é mau, então não pode ser bom, porque isso é contrário à sua definição. Estranho, não é? Pense-se na dor e no prazer. Se nada existe sem o seu contrário, e se o contrário da dor é o prazer e o prazer é inquestionavelmente uma coisa boa, então a dor também tem de ser uma coisa boa. E vice-versa: se o contrário do prazer é a dor e a dor é uma coisa má, então o prazer tem de ser uma coisa má!

A culpa de tamanhas confusões está na linguagem, que não só nos faz cair em paradoxos que contrariam os nossos mais sensatos juízos, como nos faz crer em coisas que não existem. Pense-se na palavra silêncioSilêncio significa ausência de som, por isso, enquanto ausência de algo, não é uma entidade, não é um ser, não tendo, por isso, existência própria. E se o silêncio não existe, por que razão dizemos amiúde Silêncio!? Certamente há uma função associada a esta frase imperativa, de facto, quando ela é proferida o que se requer é que alguém não emita qualquer som, mas isso coloca-nos outro problema: pede-se uma ação que, na verdade, consiste em não agir — não falar, não rir, não mexer. Seremos todos doidos por andar a proferir a torto e a direito palavras que não correspondem a coisa alguma? E por falar em coisa alguma, as mesmas duas palavras, quando usadas em ordens diferentes, têm significados opostos, pois vejamos: coisa alguma significa nada e alguma coisa significa algo. Como é isso possível? E que dizer da palavra nada? O nada, que para além de pronome e adverbio também é um nome, parece ser uma entidade dotada de propriedades quando, na verdade, seja o que for o nada, há de ser sempre algo destituído de propriedades. Não se atribui a uma cadeira, por exemplo, a propriedade de não ser um líquido, embora, claramente, se algo é uma cadeira, não é um líquido. Como é então possível que possamos atribuir à palavra nada, ou à palavra silêncio, um significado que consiste apenas na ausência de propriedades? E não poderíamos acertadamente afirmar que, independentemente do que possa ser o nada, se é concebível pelo pensamento e articulável pela nossa linguagem, não terá o nada de ser algo para alguém? Seremos forçados a admitir que o nada, que todos nós sabemos que é apenas a ausência de algo, é, afinal, algo? Talvez assim seja, porque já muito se disse e escreveu sobre o nada. Sartre dedicou um livro inteiro ao ser e ao nada e Heidegger defendeu que somente pelo nada se revela o ser autêntico. E assim se vê o nada a aparecer quando os filósofos se põem a pensar no que é o ser e mais uma vez aqui se testemunha a dualidade que se tece no coração das coisas.

Reza a lenda que Deus criou o mundo a partir do nada, convencido de que alguma coisa era preferível ao nada, mas nós que por cá andamos já há um tempo podemos afirmar sem receio que, se Deus realmente criou alguma coisa, em muito se enganou, não sendo por isso de fiar no que toca a juízos e opiniões, não dando nós por provado que alguma coisa seja melhor a nada. Beckett afirmou a certo momento que qualquer palavra é como uma mancha desnecessária no silêncio e no nada. E confiando nós mais em Beckett, que foi pessoa como nós, do que em demiurgos cruéis, estamos tentados a concordar que aquilo que até agora dissemos é desnecessário, mas também acreditamos que o interesse do mundo começa quando a necessidade termina. Aquilo que não é da ordem do necessário, que muitos consideram ser uma falha, parece-nos o que de mais digno há na vida humana. Claro que também sabemos que ninguém sabe onde está a fronteira entre o necessário e o desnecessário, embora muita gente pense que sabe. Estipular tal linha divisória é tarefa tão inglória como precisar quantos grãos de areia são precisos para formar um monte de areia. E mais uma vez vemos a linguagem a brincar com os nossos pensamentos. 

Para nos ajudar a viver num mundo tão complexo, resolveram os homens postular como reais as suas mais afetuosas ilusões e atribuir a cada coisa o seu contrário, pois muito sofre quem vive e triste é que assim seja, mas a tristeza também é uma coisa boa, claro!, porque é o contrário da alegria e, como já ficou provado, se alguém quer a alegria tem de querer também a tristeza. A dualidade faz parte da vida e deve ser abraçada, sob risco de abdicarmos daquilo mesmo que nos faz humanos. Mas como nem só de razão vive o homem, e razões há-as para todos os gostos e feitios, mais vale não questionar demasiado as ideias dos homens, que estas, frágeis e voláteis, pouco podem contra os mais altos desígnios que regem o comércio do corpo. 

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M. H. Restivo nasceu em 1984 e vive no Porto. Licenciada em filosofia e em música, dedica-se ao ensino e a projetos de índole artística.