A singular pluralidade de Fernando Pessoa passa, antes de tudo, pela gênese artística de seus heterônimos. Seja como Fernando – o próprio – , Álvaro, Alberto ou Ricardo (ou ainda Bernardo e outros menores), o genial poeta criou personagens que existiram soberanos em estilo, temática, dimensão estética e qualidade.
A partir (e além) da esteira onde transitaram Rimbaud com seu “verbo em alquimia”, Baudelaire, buscando substituir a pessoalidade do estilo por uma “teoria das correspondências”, e Mallarmé, com sua “magia da linguagem”, Pessoa levou sua obra a um patamar inédito, sendo vários e único em uma vida breve (para ele, muito sentido fez o “arte longa, vida breve”).
A intensa densidade emocional e a altíssima voltagem poética, em conjunto com a profunda leitura psíquica que soube emprestar a cada tema, deixam sua obra muito próxima da filosofia e das ciências que buscam o entendimento do acontecer humano. As entrelinhas são tantas que logo se fazem escadas: degrau por degrau, para cima e para baixo, para o centro e para os dentros, temos sempre algo (a mais) para (re)descobrir em sua poesia. O próprio Freud admitiu que, toda vez que chegava a uma descoberta no campo do psiquismo, algum poeta já o havia precedido. No caso de Pessoa, em quaisquer dos seus heterônimos-personagens, são tantos os “achados” que fazem essa tradução do nosso funcionamento emocional, que esse viés não apenas se confunde com a obra: é a própria.
Personagem vem do grego persona, que significa máscara. Daí também deriva “personalidade”, como o modo social de personalidade de cada indivíduo. No caso de Fernando Pessoa, despersonalização – não no sentido de sintoma – ou desdobramento (ou ainda os nomes que venham a ter, nesses batismos menores), a mágica de ser artisticamente vários eus em um só – nesse patamar de excelência – , será sempre sua marca única, genial e irrepetível. A busca quase obstinada do conhecimento emocional pelo viés das sensações aparece em vários momentos, inclusive ao que tange o próprio ato de criar. Ele ensina que a arte maior se faz com a imaginação, não com o coração. “Sentir? Sinta quem lê.” Ele também nos diz que: “Não conhecemos senão nossas sensações. O universo é, pois, um simples conceito nosso”.
Talvez ou também por isso, muitos buscam paradeiro do real Fernando Pessoa, aquele Pessoa física – cotidiana e tributável: seria nos textos do ingênuo Caeiro, no clássico Reis, no moderno Campos? Ou ainda na prosa poética do burocrata Bernardo Soares? Inútil a busca: nele, a soma das partes é maior que o todo.
Este editorial deve lembrar que o poeta foi o maior colaborador (e diretor literário) de uma revista chamada Athena, publicada mensalmente entre os anos 1924 e 25. (Cerca de dez antes antes, dirigiu também a Revista Orpheu).
O artigo introdutório publicado por ele no primeiro número, evoca a necessidade do apuro cultural que todos deveriam buscar. E diz que essa busca está ligada diretamente ao nome escolhido para a revista: “Não se aprende a ser artista: aprende-se, porém, a saber sê-lo. Em certo modo, contudo, quanto maior o artista nato, maior a sua capacidade para ser mais que o artista nato. Cada um tem o Apolo que busca, e terá a Athena que buscar”.
Eis a busca e o convite. A arte tem o dom universal de atravessar o tempo e derrubar os muros, levando adiante o que é a essência do conhecimento, dos sentidos e do acontecer humano. É o bastão que Fernando Pessoa entrega a Júlia Moura Lopes para que a Athena continue viva. Nós, seus leitores, temos muito a agradecer aos dois.
Jaime Vaz Brasil, Poeta e Psiquiatra – Diretor do Instituto Fernando Pessoa (Brasil)
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