PREFÁCIO PARA “GERMANA, A BEGÓNIA” – por Carlos Clara Gomes

Foto de Ivo Costa/Teatro Perro

[A estreia deste espectáculo com texto de Ricardo Fonseca Mota e encenação e representação de Gi da Conceição aconteceu algumas horas antes da vaga de incêndios que assolou o país em Outubro 2017. Em 2019 é lançado pelas Edições Esgotadas – Viseu o livro contendo o texto teatral cujo prefácio se transcreve a seguir]

Este belíssimo texto, quase premonitório, quase oracular do que iria acontecer escassas horas depois de extinto o aplauso com que o público brindou esta estreia, começa mexendo e remexendo as vísceras de um país que numa dada madrugada de abril jurou ser a casa de todos.

E mesmo sem agitar o mantra do fatalismo da interioridade, percorre no espaço de uma casa habitada por uma actriz e por memórias, as notícias mais recentes (algumas delas, memórias).

E é também recorrendo a memórias comuns – nossas, de todos nós – por assentes numa linguagem também ela comum que se constitui a rampa de lançamento, a viagem exploratória da vida e da morte. E da sobrevida também.

O tempo é um instrumento de viagens à roda do mundo documentado por essas mesmas notícias nos diários de bordo que chegam com alguma displicência (e atraso, convenhamos) ao tal interior: “Os jornais são a prova de que não acontece nada bom há anos e anos.”

E esse/este interior é-o não por circunstância geográfica mas por fado de fugas para litorais pesqueiros e portos de arribação.

É, aliás, à volta da dinâmica centralista que foi erguido este terrunho a que hoje chamamos Portugal.

“Qualquer dia não temos espaço para enterrar tanta gente”, diz Germana enquanto desenterra mais notícias a partir da pilha de jornais.

“E eu não tenho ninguém a quem oferecer a minha morte. Eu não vou morrer, vou só acabar. “ A vertigem da morte é uma recorrência ao longo do texto. Como a da vida também o é, metáforas de viagens entre Passado e Futuro.

E o Presente é uma efemeridade, quase não existe por tão intangível.

Pois: Germana abraça o tempo presente, explorando-o como se fosse uma surpresa. O Passado já ela o conhece. E o Futuro também: Sabe que morrerá, esse é o seu Futuro inexorável. Resta-lhe, então, o Presente, que de tão próximo e simultaneamente tão intangível, se transforma rapidamente em Passado quando ainda há poucos segundos atrás era Futuro.

Essa tricotomia Passado-Presente-Futuro está bem explicada na alusão aos livros que Germana leu e quer ainda ler: “Gastei a juventude com os clássicos e tenho ainda tantos por ler.”

O Presente é o tempo da peça num espaço que transcende a convenção do território cénico.

O monólogo de Germana é a história da História. É o mundo no regaço de Germana, na voz de Germana, no corpo de Germana.

O Público sai da sala deliciado com esta criação.

Estava uma noite quente, apesar do Outubro beirão.

Ainda reverberava a tragédia de Pedrógão.

Reverberava tanto ao ponto de julgarmos que pior não seria possível.

Mas foi.

E foi-o nessa noite que começou mágica e se revelou funesta.

E lá vamos nós remexer nas memórias e na sabedoria que a vida nos oferece grátis e chegamos à conclusão que é sempre possível haver algo ainda mais desgraçado depois de qualquer holocausto.

foto de Ivo Costa/Teatro Perro

Nestas condições, como escrever um prefácio que jeito tenha?… Ainda hoje, ao ler a peça, sinto um calafrio pois os signos estão tão lá todos depois da tragédia.

Quem assistiu à estreia da peça naquela noite não consegue dissociar um evento de outro.

Ao tomar conhecimento das notícias nessa madrugada ia acompanhando-as tendo imperceptivelmente como soundtrack as palavras de Germana:

“Se terminar de ler os livros todos antes de o mundo acabar beberei este copo de veneno.”

Peço-vos desculpa se não consigo ser menos emotivo e mais racional.

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Carlos Clara Gomes, Nasc. Viseu, 1958
Autor e/ou produtor de cerca de meia centena de fonogramas, espraia-se também pela escrita [Romance (MONTEMURO, Ed, Esgotadas, 2013), Teatro (CRÓNICAS DO INVERNO, Ed. Esgotadas, 2013 – para lá de muitos inéditos levados à cena pela Companhia DeMente, Teatro Regional da Serra do Montemuro, Filhos do Nada, Womb of Creation, Extraluno, O Enredo, Teatro Grão Vasco, entre outros), Poesia (RETRATO DE MULHER NO CAIS DURANTE, Ed. Esgotadas, 2017) e ainda Ópera Popular (AUTO DA FONTE DOS AMORES, Tradisom, 2011)]