EDITORIAL – ATHENA & AS ARTES, HOJE (1) – por Paulo Ferreira da Cunha

Athena faz um ano, e já nela se evidencia, como traço muito vincado, a vocação cultural geral, do pensamento, das letras e das artes. Neste aniversário, julgamos que seria importante reflectirmos um pouco sobre estas últimas, que andam, um pouco por toda a parte, em maré não tanto de crise (essa já vem de longe, e nem é muito mau que assim permaneça), mas de incompreensão e até de perseguição.

Já não estamos num tempo de ilusões, nem mesmo para idealismos. Nos últimos anos, foram ruindo muitos mitos, e as utopias que tinham alguns como sólidas fizeram-se em estilhaços. A proliferação das redes sociais permite ter uma imagem não romantizada da realidade. E embora haja muitas fake news, a verdade é que essas mesmas mistificações, que no possível poderão ser desmascaradas com critérios de prudência, crítica e sagacidade, revelam muito do que alguns (com meios para tanto) querem que pensemos.

Já não podemos manter ilusões, e não se nos permite também continuar nas litanias de lamentação e crítica. É necessário agir, sob pena de se perder toda a legitimidade para a atitude negativista, para mais se pública.

Porém, agir civicamente, politicamente, culturalmente, não é nada fácil, nem se encontra nada facilitado. Ao contrário do que se proclama, as entidades que congregam o activismo nem sempre serão abertas à generosidade aderente e entusiástica de quem se lhes queira juntar.

Importa ter, assim, antes de mais, ideias claras no terreno das ideias, do pensamento, da cultura. E uma das questões essenciais, sobre que é preciso manter a cabeça arejada, é, como começamos por dizer, a Arte. A Arte que anda hoje assolada por preconceitos que revelam recuo civilizacional no domínio estético, jurídico e político.

Cada vez mais Arte é, na verdade, e por muito que choque, o que o artista diz que o é. Podemos afirmar que há um critério de “pedestal” ou de “caixilho”. Não aprenderam muitos de nós, juristas ou economistas, gestores e afins, no manual de Economia de Pereira de Moura, que Economia (dissera-o já um clássico desta ciência) seria aquilo que os economistas fazem?

Primeira questão a meditar: quem é o homem da rua para dizer o que é a Economia? Quem é o mesmo homem da rua para ditar o que deve ou não deve ser arte? E, reciprocamente: quem é o artista que tem poder para arrastar o homem da rua para a sua exposição, concerto, livro, filme, programa de TV, etc.? O público é juiz na medida em que pode gostar ou não, ir ou não, aplaudir ou não. E se pode virar as costas ao que o artista diz que é arte, se estiver garantido que o que ele faz lhe não entrará abusivamente e contra sua vontade pela casa ou pelos sentidos adentro, então deixe o artista em paz, e escolha aderir ou não aderir.

É claro que se pode colocar um problema político geral, que é clássico: haverá poetas na República, na Cidade Ideal ou Utopia? E poetas hoje são todos os artistas (assim se deve interpretar). Há teorias totalitárias que não querem artistas, ou pior: só querem os que louvem a sua forma de Estado, o seu regime, que se conformem com os seus ditames. A Liberdade da Arte é, realmente, uma sensitiva da liberdade civil, do quotidiano das pessoas, e da democraticidade e justiça da Política e do Direito.

E a questão agudiza-se porque não se trata de avaliação e julgamento da arte por um homem da rua com preconceitos por assim dizer “normais”. Passa a haver grupos fanáticos (que podem ter muita razão, mas não sabem o que é convivência social nem democracia) que, sentindo-se chocados por conteúdos deste ou daquele tipo (a panóplia do que é tabu está a aumentar muito) se arrogam o direito de querer a proibição de obras de todo o tipo. Até a Bíblia, que é brandida por uns para erradicar imoralidades e blasfémias artísticas é por outros apontada com uma longa coleção de imoralidades, guerras, assassinatos, adultérios e perversões. E, portanto, ninguém estará a salvo.

Se a discussão sobre a arte entrar na guerra da Historiografia, na guerra das raças (que cientificamente não existem), na guerra dos sexos ou dos géneros, na guerra das medicinas e das vacinas e medicamentos, na guerra da língua e das designações (já Confúcio achava que este era o principal problema político) para além da guerra das ideologias clássicas, o certo e sabido é que não ficará pedra sobre pedra e se estarão a cavar, pela arte, a seu pretexto, ainda mais trincheiras sociais que estão a fazer a fraternidade afastar-se cada vez mais do nosso horizonte. Cada dia mais haverá guerra civil entre nós. E era tempo de tentar fazer a paz…

A selectividade do escândalo é também um caso para pensar: corre a notícia (tendo como fonte o “monitor do debate político no meio digital”) que o facto de um menor ter sido deixado pelos seus pais na cela de alguém condenado por estupro teve 8% do impacto mediático de uma cena de nudez no Museu de Arte Moderna em São Paulo. Não será certamente pelo interesse popular pela Arte…

O que está mais actualmente em causa é o efeito de uma mentalidade persecutória (punitivista – já há nome para ela) que não parece deixar espaço para uma brincadeira inocente sequer, nem para a História, a tradição, etc. Conta-se que o jogo cruzado dos preconceitos contra figuras históricas fez com que as notas de Euro não tivessem efígies de heróis europeus. Si non è vero, è bene trovato… Até Shakespeare foi vetado pelo Mercador de Veneza ser supostamente antissemítico. Bom, com o Brexit pouparam-se umas notas…

A lógica proibitiva é curiosa: é mesmo a vontade de impedir que se manifestem não só opiniões como que se mostrem certos factos históricos, que incomodam os novos censores. Quando se querem proibir os filmes clássicos em que os actores fumam (e fiz questão de dar este exemplo, porque nunca fumei)… Há uma vontade de infantilização, de menorização dos concidadãos (um Was ist Aufklaerung ao contrário), que seriam incapazes de reagir a essas pretensas contaminações. E há, no fundo, uma tentativa prometeica e de substituição da divindade. O que Gabriel Périssé disse para os fundamentalistas religiosos vale para todos os fundamentalistas: “Os fanáticos, reunidos semanalmente, olham para as estatísticas e planejam dar umas férias para Deus tão incompetente. (…).”

O neutro, o plácido, o banal pode tornar-se sacrílego num contexto de sociedade fechada e altamente preconceituosa, que comande os poderes num sentido repressivo.

Gosto muito daquela canção do George Brassens, tão bem adaptada para castelhano por Paco Ibañez, Au village sans prétention j’ai mauvaise réputation… Ela é um libelo de defesa de um “petit bonhomme” a quem o preconceito geral estigmatiza.

Em alguns países, em alguns tempos, felizmente, ainda se viverá alguma elevação nesta matéria artística e na relação dos moral entrepreneurs com ela. Assim como na relação entre a arte e os poderes. Espero sempre viver em países onde haja o direito de expor e de escrever, encenar… os maiores absurdos à luz do pensamento bem-comportado. Aliás, é muito aconselhável que quem o perfilhe não vá a esses antros, nem abra os respectivos livros. Assim viverá muito mais feliz… e os artistas talvez também… Embora não seja certo, infelizmente.

E a política e o Direito só deverão ser chamadas quando seja pisado o risco da infracção, não por delito de opinião, não por crime de heresia, não por desalinhamento ideológico, não porque a Arte é muito feia, repugnante, ou visivelmente mal-alinhavada. Um artista medíocre poderá ser penalizado pela má qualidade? Talvez, se fez propaganda enganosa. Mas como prová-lo? Um artista que não venere dos deuses da cidade e seja corruptor dos mais novos? Sim, essa foi a acusação a Sócrates, o grego.

Sejamos sempre razoáveis: pode haver obras de arte criminosas ou que apelem a crimes, ou pelo menos infracções, etc. Uma coisa é o intuito claramente criminoso de uma obra, outra é o seguir uma corrente de épater le bourgeois, que por vezes já nem espanta nem choca, não diverte nem converte, mas que segue um estilo, grosso modo.

Quando aparece uma obra dessas que põe em causa, de forma por vezes de muito mau gosto e sem qualquer humor, engenho, técnica especial, e muito menos talento, quando põe em causa alguns dos valores, figuras sagradas, históricas, etc., do Estado ou das Religiões, ou padrões de morais mais ou menos consensualizadas, os fanáticos fundamentalistas entram em pânico e em tumulto. Não saberão que são os maiores aliados dos artistas que exploram esse filão de indignação? Uns naturalmente com as mais altas ideias e intenções, outros nem tanto… E que se estivessem sossegados tais artistas não teriam certamente grande público, e um dia provavelmente, nessa linha pretensamente iconoclasta, apenas aqueles com mensagem e algo mais se fariam ouvir? Bom, ou simplesmente os bafejados pela sorte…

Mas não. Como dizia Nietzsche, na Aurora, “aquele que vive de dar luta a um inimigo não quer que ele morra”. Para as cruzadas do Bem é preciso o Mal. Para que alguns possam evidenciar a sua fé, é preciso que haja diabólicos profanadores, sacrílegos. Para, por seu turno, haver arte vanguardista de certo tipo é necessário continuar a zurzir nos burgueses: Brell era um génio, e sabia que “plus ça devient vieux, plus ça devient bête. Disent-ils, monsieur le comissaire”. Os burgueses envelhecem e os jovens iconoclastas tornaram-se notários burguesíssimos, que bebem chez la Montaland.

Nas Artes não se passa facilmente hoje de iconoclasta a burguês. Digam sinceramente: alguém se choca já? Estamos cauterizados, como diriam os eticistas. Oxalá essa insensibilidade à provocação não nos embote os sentidos à Arte. De vez em quando está bem que recordem a quem não sabe as misérias e as hipocrisias. Mas não fazia mal de vez em quando o fizessem com mais graça, menos fanérica ou menos crypticamente (os extremos tocam-se), e mesmo com um pouco de Belo e até, quem sabe, de Sublime?

Infelizmente, creio que as estratégias usadas por muitos artistas, sobretudo plásticos, mas em geral, para supostamente combater a sociedade burguesa, não serão, muitas vezes, grandemente eficazes. Conseguindo até que algumas pessoas que seriam simpáticas às suas causas políticas, por repugnância de gosto, ou moral, pelo menos, acabem por cair nos braços do conservadorismo. Mais eficaz parece ser o discurso do legal storytelling, em que casos mais dramáticos aparecem literariamente, arquitetados para mostrar situações chocantes.

Mas que aquilo a que se chama arte é hoje um problema maior, e tanto maior quanto, além das subjectividades, se intromete a mão mais que visível do mercado, isso é insofismável. Só que o mercado não é o mercado simplesmente do público consumidor. O mercado é falseado pelos grandes fornecedores. O antigo discreto marchant passa a ser o grande monopolista, que não só determina que livros as editoras devem publicar como que tipo de arte se deve produzir. Quando li Anne Cauquelin compreendi explicitamente muita coisa sobre a arte de hoje.

Tudo parece bastante confundido. Os termos em que se defende já a Arte do espectro da censura fazem lembrar a argumentação metafísica da Arte pela Arte. O que soa a estranho. É que se a Arte é um absoluto, valeria por si, só nada valendo para os cegos à estética, os bárbaros. Recordemos o belo poema de Cavafis. E se a Arte é luta e documento, testemunho, então terá que lutar para se afirmar. E mesmo eventualmente consentir lutas no seu seio, de correntes, estilos, etc.. Mas não lutar pela própria sobrevivência, que é liberdade e direito constitucional.

Como jurista, pouco me importa que chamem arte a isto ou àquilo. Importa-me sobretudo é saber se esse isto ou aquilo constitui alguma conduta que entre num tipo penal de ilícito e em que esteja presente a culpa do agente. O que ocorrerá decerto muito raramente. Mas poderá eventual e creio que ainda raramente ocorrer…

Por outro lado, como amigo das Artes preocupa-me que esta caça ao artista e policiamento das artes possam fazer a Arte estagnar (e na verdade toda a expressão), na facilidade do jogo de polícias e transgressores artistas, de escandalizados líderes religiosos ou moralistas (conservadores ou lunáticos) e sacrílegos blasfemos artistas, etc.

Há mais mundo a explorar nas Artes além dessa transgressão um pouco pueril e gasta já, que só convence os já convencidos.

Gostaria de ver obras de arte robustas, poderosas, que de forma decisiva pudessem espelhar a sociedade actual, e mesmo fazer a crítica da sociedade da informação no que ela tem de perverso, como, desde logo, a ideologia do politicamente correto, do pensamento único e do chamado neoliberalismo. São três cabeças da hidra, com relações entre si mas por vezes entredevorando-se. Continuar a fustigar imagens religiosas, e / ou apresentando nudezas  e/ ou rudezas parece a persistência num estádio ainda metafísico, diriam quiçá positivistas, ou infantil, diriam poderiam dizer quer marxistas (recordando um título de Lénin) quer psiquiatras…

Felizmente há já sinais de trabalhos que, até aproveitando regras do jogo do mercado, forjam formas divertidas, inteligentes, lúdicas e subtis, além de agradáveis, de problematizar as nossas certezas quotidianas. E talvez seja pelo lado da crítica artística do quotidiano, e por exemplo dos seus objectos e funções consabidas, que se poderá começar uma revolução mais profunda que as superficialidades institucionais: uma lenta, gradual mas sólida e durável revolução de mentalidades.

Não é pelo valor metafísico daquilo a que chamam Arte que os trabalhos dos artistas contemporâneos devem ser protegidos da sanha fundamentalista. Não é sequer pelo seu valor estético. É pela sua realidade expressiva. É pela sua existência como produto de pessoas que, por alguma razão, daquele modo quiseram comunicar “aquilo” (seja o que for) aos demais. E os demais dirão, livremente.

A liberdade de expressão artística deve ser defendida, não especificamente porque é mais ou menos Arte, mas porque é, sempre, e de qualquer modo, expressão humana. E qualquer expressão humana tem que ser protegida, dentro dos limites intrínsecos (que não são muitos e são razoáveis) do Direito à Expressão.

Athena é uma voz independente e sem preconceitos antigos ou modernos, dando vida às artes, às letras, ao pensamento, numa cultura livre. E assim continuemos por muitos anos. Os meus parabéns à Dr.ª Júlia Moura Lopes e à sua equipa. Num momento de grandes preconceitos, sabemos onde podemos ler e escrever com a mente desnublada. É preciso que proliferem esses oásis… E que saibam resistir e florir.

[1] O presente editorial faz-se eco de algumas conferências e artigos que temos proferido e escrito em volta destas temáticas, em Portugal e no Brasil.

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Paulo Ferreira da Cunha – Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.