Um centenário em (re)visão: Crenças e práticas religiosas no contexto das “aparições” de Fátima
Consensualmente aceite a particular devoção do culto mariano na sociedade portuguesa, resultante da longa sedimentação de elementos civilizacionais remotos, de natureza matriarcal, foi-se arreigando a convicção de que os fenómenos e experiências para-religiosas, enxertados nessa tradição cultural popular, seriam totalmente alheios de qualquer tipo de interpelação científica, por parte das ciências humanas e sociais e muito menos de disciplinas mais físicas, como as Neurociências emergentes.
Ou seja, ter-se-á destilado a ideia, ainda maioritária na opinião pública nacional, de que as experiências religiosas referentes às consagradas “aparições marianas” estariam perfeitamente delimitadas ao foro confessional e à crença emocional, no pressuposto de que seriam exclusivas e indignas de observação e reflexão racionais. Mais do isso, o debate em torno deste tema tem-se caraterizado, quase inevitavelmente, por um maniqueísmo, a preto e branco, sem alternativas de cinzento, como em tantas outras questões paradoxais. Em boa parte das situações inéditas nem sempre a resposta está entre duas modalidades – realidade ou ilusão – mas sim na interpretação temporária e possível das mesmas.
Os fundamentos considerados e aceites pela comissão de eclesiásticos, em finais dos anos de 1920, autorizando a decisão do Bispo de Leiria em aprovar o culto da Virgem Maria em Fátima, apresentam-se hoje à discussão face aos novos conhecimentos revelados por disciplinas e subdisciplinas no âmbito das ciências neurocognitivas, psicolinguística, comunicação não-verbal, psicologia integral ou transpessoal, estados modificados de consciência, entre outras.
Não seria de exigir obviamente que, à época, os membros da comissão de inquérito tivessem antecipado os requisitos e instrumentos utilizados na análise multifactorial de experiências “paranormais” e similares religiosos. Ou seja, a questão da coerência inabalável dos pequenos videntes, pedra de toque essencial que autorizou para a credibilização das Aparições como reais visualizações, in situ, da figura corporal de Maria da Nazaré, tal como viveu há crca de 2000 anos, terá que ser fatalmente confrontada com idênticas supostas “aparições” – curiosamente associadas a revelações proféticas, em muitos casos – de entidades “celestes” integradas nos códigos culturais do espaço-tempo de cada lugar e de cada tempo histórico.
Novas leituras para um fenómeno ancestral
Deste modo, em Fátima, 1917, só o sistema de crenças dominante – os “frames of reference” de que fala o cardeal Josep Ratzinger, Papa Bento XVI – poderia dar sentido à singularidade da alegada “visão” – mediada por Lúcia, tal como nos contextos culturais contemporâneos experiências visionárias análogas, do atual “contatismo” também por vezes proselitista, como sugrem alguns trabalhos da nossa antologia – só podem induzir aos recetores de um qualquer estímulo tipos de “representações” de entidades não-humanas, culturalmente aceites e interpretados pelos códigos cognitivos do momento. Dito de uma forma simplista, o ET hoje, o anjo e a Virgem Maria, ontem.
Tem-se subestimado neste episódio de Fátima uma lei que, felizmente, tem dado frutos no decurso dos milénios de existência do Homo Sapiens: o progresso das Ciências e do Conhecimento em geral, de que a respetiva história é testemunha.
Assim, estamos hoje em condições de propor uma primeira súmula de perspetivas que vão além do escopo tradicional das ciências humanas e sociais, ou seja, às abordagens da Antropologia Física, Religiosa, Cultural e da Sociologia, cujo estatuto interventivo tem sido “tolerado” nas tímidas incursões a esse rico espólio das Experiências Humanas Extraordinárias, como são as do foro religioso-popular, entre as quais se contam os episódios clássicos de Fátima, em 1917. E sabemos quão tímidas e limitadas têm sido as investigações levadas a cabo pelos institutos católicos, a quem caberia boa parte das responsabilidades nesta matéria. Uma ou outra tentativa de análise detalhada, acaba por conflituar com o compromisso de fundo de cariz religioso e fideísta: a interpretação católica oficial dos eventos da Cova da Iria. Daí, as dificuldades em isolar todo o vasto acervo documental relativo às “aparições marianas” de Fátima, sujeitando-o ao estudo e à minúcia dos olhares atuais, aproveitando todos os “sinais” e pistas que essas experiências-limite possam sugerir para melhor conhecermos as nossas debilidades e também, com é obvio, as nossas capacidades ignotas.
Um século depois, o culto, as crenças e as práticas religiosas que vigoram há séculos em torno daquele santuário mariano, foram objeto de análise multidisciplinar e multiconfessional na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, nos dias 20 e 21 de Outubro, no Congresso (Re)Visões de Fátima. O conclave juntou duas dezenas de especialistas, de diferentes áreas e disciplinas, que dissecaram uma vasta gama de fenómenos individuais e coletivos associados às práticas da religiosidade popular em torno do tópico de Fátima.
A “evangelização” de Fátima e as propostas multidisciplinares
No âmbito das “coordenadas históricas” buscou-se linhas de entendimento de Fátima e da sua legitimação no quadro religioso do catolicismo português e da conjuntura política e ideológica proposta pela I República. Desse escopo se encarregaram Adélio Abreu (Universidade Católica – Porto): “A afirmação de Fátima no catolicismo português da época (1917-1930)”; José Eduardo Franco (Universidade de Lisboa): “Aparições e distorções: antifatimismo e leituras divergentes do fenómeno de Fátima”; e Luís Filipe Reis Torgal (Universidade de Coimbra): “A criação de Fátima, a Igreja e o renascer do populismo católico. Da crise da I República ao início do Estado Novo”.
Já a compreensão de Fátima, enquanto fenómeno com raízes profundas nos arcanos da consciência coletiva do povo português, foi avaliada em detalhe por Annabela Rita (Universidade de Lisboa): “Fátima e a Identidade Nacional”, Juan Sanchez-Oro (Universidade Complitemse de Madrid): “As aparições marianas na história europeia”; Isabel Ponce de Leão (Universidade Fernando Pessoa): “Fátima nas artes e na literatura”; Joaquim Franco (SIC e ICC/Universidade Lusófona): “Fátima: a reconstrução de um fenómeno religioso no deslumbramento mediático” e Luiza Frazão (investigadora do sagrado feminino): “Fátima – a sobrevivência do culto da grande deusa celta”.
Na vertente filosófica, as abordagens propuseram uma reflexão sobre a essência finalista que ultrapassa o culto utilitário, as promessas e as peregrinações, indo a sua interpretação além da manifestação concreta de Fátima de 1917. Foi nesse sentido que intervieram Paulo Borges (Universidade de Lisboa): ““Ela às vezes cega”. O Feminino Divino: um arquétipo e uma experiência. Para uma renovada compreensão das aparições de Fátima”; Manuel Curado (Universidade do Minho): “O Sentido de Mil Fátimas” e Celeste Natário (Universidade do Porto): “Entre o Céu e a Terra: a Mãe”.
Em termos teológicos, o debate centrou-se na matriz do fenómeno das chamadas “mariofanias” e do lugar da entidade cultuada que faz jus à veneração na Cova de Iria. Anselmo Borges (Universidade de Coimbra); “Evangelizar Fátima” e Frei Bento Domingues (teólogo dominicano): “Para ser católico não é preciso acreditar em Fátima” e José Brissos-Lino (ICC/ Universidade Lusófona)”: Os processos de culpa, simonia e alívio na devoção mariana em Fátima”. Os investigadores apreciar os diferentes parâmetros da fenomenologia “aparicional” à luz de novos indícios experimentais e físicos, nomeadamente através de Mário Simões (Universidade de Lisboa): “A realidade última – entre imaginação e realidade”; Manuel Domingos (Universidade Lusíada): “Dados e reflexões acerca da neuropsicoteologia”; Raul Berenguel (CTEC, Universidade Fernando Pessoa) e Joaquim Fernandes (CTEC, Universidade Fernando Pessoa): “Quando o “Sol” desceu à Terra” e José Barbosa Machado (CEL /UTAD): “Reportagem fotográfica de Benoliel no dia 13 de outubro de 1917”.
Com a projeção do documentário “As Faces de Fátima” e uma “mesa conclusiva” encerrou-se o evento que catalisou o interesse participativo da plateia certificando-se a ideia de que, após este debate crítico, aberto e exploratório, a partir de hoje nada será como dantes no que ao culto de Fátima diz respeito.
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Joaquim Fernandes é doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, co-fundador do CTEC- Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, na Universidade Fernando Pessoa, Porto e co-autor, com Fina d’ Armada, de obras sobre a fenomenologia das “aparições” marianas, como “Fátima nos bastidores do Segredo” (Lisboa, 2002, Âncora Editora).
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