A LUZ NOS OLHOS DA POESIA INAUGURAL
DE DELALVES COSTA
O Ininterruptos, choremos ruas dentro dos ossos, novo livro de Delalves Costa, pela editora Bestiário, do lúcido escritor-editor Roberto Schmitt-Prym, não é apenas a surpresa da descoberta de um poeta, que se constata pelos primeiros versos, mas também é o reconhecimento de sua maturidade, com original visão do mundo.
Caracteriza-se por um jogo de contraposições entre o poético e o prosaico, o uso de vocábulos que normalmente pesam e no seu caso, consegue tornar leves e voantes no poema. Como “falésia”, “fórceps”, “homemporâneo” ou “ethos”, mas pelo mover mágico, catalizador, incrivelmente funcionam no seu texto, que é à queima-roupa entre a lógica e o caos, ou o caos que se funde a uma lógica inaugural das coisas, sob “o sapato dos dias”.
É permeado pela sombra concretista, com a diferença fundamental: as palavras estão vivas no espaço branco, respirantes como cacto no deserto. Por se casarem estranhamente e com ardor de pênseis metáforas.
Há um relato que parece cego de signos, mas é um cego que vê “primaveras no abismo”. E é o leitor, sim, “o passarinho alvejado por um estilingue.” Palavras gerando palavras, em combinação de furor e mistério.
O que nos lembra o francês René Char. E o texto se encanta na combustão, empenha-se na invenção da realidade. E com alegria, o Rio Grande do Sul ganha mais um criador de força, com sotaque próprio, peculiar. E muito honrará sua já imperiosa literatura.
Rio de Janeiro, “Morada do vento”, 9 de novembro de 2020
Carlos Nejar
Escritor da Academia Brasileira de Letras
https://editorabestiario.com.br/livros/ininterruptos.html?fbclid=IwAR3saSAgtt_pOzLMvkhWRtIQBfYUpHPWV0GVHq_saJdLZGqBDUklKZ3fz4o
Seguem 3 poesias, identificadas por número.
1.
não posso acreditar
estar esta poesia de sentença
haverá quem a leia
apenas para elevá-la à forca
haverá quem a leia
por morar em praça pública
onde é o espetáculo
mal sabia que parir
de útero invertido causasse
tanta dor que do pé
de flor só brotasse espinhos
atemporal urticária
a semente extrai nasciment-
os germes do tempo
haverá quem a leia
para sepultá-la nas falésias
haverá quem a leia
e no raso de si a desperdice
mas o laudo te dirá:
de parto fórceps, tempo que
não nos viu nascer
22.
brasas mordem a mesma dor no silêncio
ossos se contraem no inverno do arrepio
pedra à flor da pele
à noite ou sob a luz
se é santo, profano
midiaserável: o fogo exala igual ardência
é a dureza da noite
só quebrada pelos relâmpagos do existir
clarão que fascina, mas que nos dilacera
a cor morro abaixo
eis a água barrenta
potável só a queda nos beirais da chuva
dos vivos, dos vivos
almas embarradas amanhecem na lama
e noticia-se a morte, mas não os mortos
24.
Hirondina Joshua
corpo é tempo
equilíbrio no fio da queda, trepar
nos infindos galhos da ilusão sem a pressa
de ser adiante arremesso
corpo é tempo
se no rosto que espelha resiliência
se cultiva a árvore da vida entre caminhos
e rugas, nossos pássaros
corpo é tempo
travessia no descampado
fôlego pouco quando doi o inverno na pele
à espera da sua derradeira época
corpo é tempo
expectativa da semente à estação
cicatrizes, tropeços e pedras, tudo impulso
para dar leveza à partida
♦♦♦
Delalves Costa (Anderson Alves) (13 de dezembro, 1981) – Osório, RS, Brasil), poeta com publicação em diversas coletâneas e plataformas literárias impressas e digitais no Brasil e em Portugal. É membro sócio-fundador da Academia dos Escritores do Litoral Norte (AELN/RS) e sócio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Tem 9 livros publicados, os mais recentes “O Apanhador de Estrelas” (Class, 2018) e “extemporâneo” ( Coralina, 2019). Tem publicado ensaios nas revistas de circulação nacional Conhecimento Prático/ Língua Portuguesa e Conhecimento Prático / Literatura e artigos de cunho científico em revistas e livros acadêmicos. Palestrante nos campos do ensino e da literatura e pesquisador acerca da cultura locus-regional do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Possui Mestrado Profissional em Educação pela Uergs – Unidade Litoral Norte, Osório/RS, Graduação em Letras Licenciatura Plena Português e Literatura Portuguesa pela Unicnec, Osório/RS. Profissionalmente, professor de Português, Literatura e Metodologia de pesquisa. Em 2019, foi escolhido Patrono da 34ª Feira do Livro de Osório e um dos 60 autores do Projeto Autor Presente, do Instituto Estadual do Livro do RS.
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