PARTE I
Os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso saber escolar ainda não nos deixou sonhar. No conhecimento da alma eles se acham muito a frente de nós, homens cotidianos já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência .
Sigmund Freud
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A thing of beauty is a joy forever.
John Keats
A Psicanálise é fruto do entrecruzamento entre a literatura e a medicina, embaladas pela mitopoética grega em seu processo criativo multidisciplinar, a serviço da plural elucidação da interioridade humana. Esse singular saber que redimensionou a visão do sujeito em sua essência plurifacetada, também se valeu das escoras invetigativas de outros cientistas, cujas buscas metódicas e conscientes caminharam na mesma direção de Sigmund Freud (1856/1939). Instrumentalizada na arte da palavra, a Psicanálise percorreu seu resoluto caminho sob a crítica de detratores ao seu inventor que, dela subtraiu os próprios equívocos em constante processo de revisão nos anos em que viveu. Releitores e comentaristas formam um continuum de recriações teóricas mas as estruturas de sua edificação na história do pensamento remanescerá como verdade, enquanto existir o homem, tal a justeza em sua constituição argumentativa. A arte lhe vem como ossatura estruturante, como esteios colaterais. O segmento seminal da Psicanálise se estatui por uma tríade de personagens do tragediógrafo Sófocles (?/406 a. C).
Figuradamente, o mito trágico forneceu a chave interpretativa mestra da Psicanálise, o Édipo, em seu caráter simbólico matricial dos desejos amorosos e hostis do menino em relação à mãe. Na narrativa poética o herói de Tebas cometeu os dois mais hediondos crimes para a cultura clássiga grega; o parricídio e o incesto, temas básicos na constituição psíquica do homem. Essa singularidade dramatúrgica ilustrou e universalizou as estruturas basilares da Psicanálise. Diferentemente dos limites de outras mitologias que apenas justificam eventos inexplicáveis na natureza, a grega explicita com a beleza trágica do herói, deuses e titãs o espectro fundante da estrutura sutil regente do psiquismo. A arte está na raíz da arquitetura freudiana com temática mitológica de surpreendente capacidade elucidativa para a idiossincrasia humana.
A tragédia de Hamlet (1599/1601), o nobre dinamarquês permitiu a Freud diagnóstico assemelhado. Desta feita pela hesitação do personagem de William Shakespeare (1564/1616) em vingar o pai, morto por envenenamento pelo irmão Cláudio que, na sequência casa-se com a rainha. Entre a corrupção palaciana, a vingança, a traição e a moralidade, estão a loucura e o incesto.
De outro complexo homônimo da lenda, vem mais uma disposição analítica e estruturante de Freud; Narciso, a lenda do infeliz e belo jovem egóico que retrata a criança onipoente a tomar-se como objeto de amor. Incapaz de investir libidinalmente nos objetos do mundo, de si faz sua maior escolha objetal. Trágicas outras consequências podem advir desse desinvestimento, como atestam J. Laplanche e J. B. Pontalis.
Tal processo de desinvestimento do objeto e de retração da libido sobre o sujeito tinha sido já posto em relevo por K. Abraham em 1908 a partir do exemplo da demência precoce. “A característica psicossexual da demência precoce é o regresso do paciente ao auto erotismo […]. o doente mental transfere para si só, como seu exclusivo objeto sexual, a totalidade da libido que a pessoa normal orienta para todos os objetos animados ou inanimados que a rodeiam. (1986)
Michelangelo Merisi, o Caravaggio (1571/1610) realizou em imagem o mito apropriado por Freud, propondo a nova ténica de eliminação do fundo para realçar a luz e adensar volume ao motiv. Com isso criou a técnica do chiaroscuro ou tenebrismo. Seus focos intensos de luz produziram um lirismo transfigurado. Retratista do mundano impactou seus acerbos críticos, ao usar marinheiros, prostitutas e gente comum das ruas como modelos para santos. Modelava com os excluídos de seu tempo contrapondo sua prática pictórica dramática e lírica, ao caráter superficial dos modelos da nobreza. Tornou-se o primeiro pintor reconhecido como barroco, antes mesmo da oficialização do estilo pela igreja.
A arte serviu-lhe de substrato por razões que Sigmund Freud explicaria ao longo de sua multifacetada produção textual. Embora não tenha deixado uma obra específica sobre a estética e suas relações com a psique, escreveu dois ensaios analíticos que indicaram uma diferente modelagem analítica enriquecendo a crítica estética. “O Moisés de Michelângelo” consagrou um inédito ordenamento valorativo às artes da visualidade (pintura e escultura) trazendo ao signo artístico mais que a potência reconstitutiva da obra em bases históricas e biográficas, sem a parcialidade de Giorgio Vassari (1511/1574), com “Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori” (1550), seguramente o criador da crítica e da historiografia da arte. Se, errou favorecendo os artistas florentinos se, inicialmente deixou de lado outros como Tiziano (c. 1473/1490//1576) o fez seguindo o figurino político da época e em defesa de interesses privados. Contudo, sua pesquisa é rigorosa e o livro o maior documento a serviço da história da arte de seu tempo.
Com imparcial agudeza, Freud sobrepôs conexões analíticas inaugurais à leitura da arte. Da escultura de Michelangelo Buonarrotti (1475/1564), exposta na Igreja de San Pietro in Vincoli (Roma) extraiu do personagem bíblico um dúbio átomo de segundo. Contrariamente ao consagrado entendimento de que Moisés prepara-se para a quebra das Tábuas da Lei por um impulso de ira, Freud o entende como já apaziguado, arrefecida a raiva após haver se dirigido ao seu povo. Sem sentimento de indignação ou rancor, preserva o estado de descanso dos que, já explodidos em imprecações, relaxaram-se apaziguados.
O problema que fascinou Freud foi o momento que Michelangelo escolheu para retratar Moisés. A tensão nas pernas sugere uma ação: o pé direito se apoia no chão e a perna esquerda está levantada de modo que apenas os artelhos tocam o chão. Freud se propõe uma questão: a ação estaria para se iniciar ou acabara de ser concluída; Moisés estava se levantando ou se sentando? Michelangelo representava Moisés em um momento de cólera pronto para quebrar as tabulas da lei, ou Moisés estaria contemplando o povo como um legislador divino que acabou de ver a Deus?
Músculos rigorosos, robustos e o um olhar dúbio de ira e placidez, ineditismo sensual e másculo naquele rosto idealizado, retrato do grande ancestral divino de Freud que levou seu povo pelos caminhos miraculosamente abertos nas águas do Mar Vermellho. Dois raios de luz saem da da região frontal da cabeça de Moisés. Em hebraico antigo, chifre e luz tem a mesma grafia. Da mesma forma que Michelangelo tirou da pedra bruta a nova figura do ser do Humanismo, Freud amadureceu uma nova teoria que foi assentando desde seu primeiro hábito intelectual infantil, o de registrar os sonhos pela manhã.
Seu tempo foi de revoluções pensamentais. Albert Einsein (1879/1955) relativizou o cosmos, Karl Marx (1818/1883) produziu sua descomunal Teoria, partindo da prática para chegar à teorização, algo inédito desde o idealismo platônico com sua poética fluidez idealista. Paralelamente, Mihail Bakhunin (1814/1876) propôs o fim das instituições que sustentam a ordem coletiva humana. Família, escola, governo e propriedade não mais. Apenas um novo homem livre de interditos da cultura, da fé e da educação oficial. Mais que impressionar-se com a monumentalidade criativa, Freud impactou-se com o efeito que o grande feito artístico é capaz: causar espanto. A vividez e os sentimentos aparentes que saíram dos cinzéis de Michelangelo levaram-no à produção do texto, em um área para a qual se dizia pouco capaz.
“Em 1913, ao longo de três semanas solitárias de setembro”, escreve, “detive-me diariamente na igreja diante da estátua, estudei-a, medi-a, sondei-a, até que me veio a compreensão que só ousei expressar no papel anonimamente” (Gay, 293). A figura monumental ostenta na fronte os cornos místicos, que representam a luz que veio a Moisés após ver Deus. Michelangelo figurou Moisés como um velho forte, robusto, imponente, com uma barba fluindo como um rio, a qual ele segura com a mão esquerda e o indicador direito. Moisés está sentado, cenho franzido, olhando severamente à sua esquerda, com as tábuas da lei sob o braço direito.
A obra de arte opera o âmbito de descobertas subsidiárias, na forma de jogo entre a sensibilidade e a razão. Jogo, a que Friedrich von Schiller (1759/1805) credita a gratuidade, uma vez que um jogador busca a superação do outro para concluir uma satisfação que dividirão como se as emoções gestadas pela expectativa fossem deslocadas para uma confraternização pessoal dirigida por uma metafísica do prazer. Há imprevisibilidade na ação lúdica (brincar/jogar) a que se pode chamar de acaso. Este surpreende e não responde afirmativamente com o esperável. “A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo.” (2006: 136/137) ).
Para Freud há dois constituintes no jogo estético, expresso na forma de relação entre o fruidor e a obra. Se, pela contemplação chega-se ao gozo estético, um prazer libidinal satisfez a algum desejo inconsciente. Quando a obra de arte opera a fantasia e o enlevo torna-se irreal, atuando como intermediação. Como se algo em si permitisse o vagar impreciso da consciência e a expansão indefinível dos sentidos, sem que o seu interlocutor sinta os limites da censura. Livre dela e da alteridade do mundo experimenta.
”um sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo. […] É o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer (CP, 8.328). É a categoria do sentimento sem reflexão, da mera possibilidade, da liberdade, do imediato, da qualidade ainda não distinguida e da independência”. (CP, 1.302, 1.328, 1.531).
Aplicada essa descrição ao soma artístico, entende-se o reflexo infinitesimal da obra no inconsciente, na medida em que ela é percebida como um “fenômeno”; ou seja, aquilo que afeta os sentidos apresentando-se à consciência em unicidade, indivisa, intangível, plena em seu estado de continuum e liberdade. Para Santaella, comentando a Fenomenologia de Charles Sanders Peirce (1839/1914), a primeira categoria do lógico americano (Primeiridade) guarda íntima relação com as estruturas psíquicas de Freud.
Apesar de não restringir consciência à razão, isto não significa que Peirce menosprezasse a razão. Sua lógica, aliás, se propõe como sendo um método científico para orientar o raciocínio. Sua lógica se estrutura, portanto, como a criação de instrumentos científicos para auxiliar e ampliar o poder da razão. Contudo, sua noção de consciência é ampla, dinâmica, em alguns aspectos próxima dos estudos da estrutura psíquica em Freud e mais próxima ainda da noção de consciência que as atuais pesquisas do cérebro estão nos dando.
Dessa indiferenciação resulta a recepção inconsciente, conjuntiva, dilatada e profunda, tangenciando significantes reprimidos, como os que aparecem nos sonhos para satisfazer desejos incólumes. João Frayze Pereira faz aguda análise do texto freudiano Escritores Criativos e Devaneios naquilo que conjuga o desejo, o prazer libidinal e o jogo.
O objeto plástico, enquanto construção muda e visível, situa-se no espaço de realização imaginária do desejo. E é nisto que reside a função da arte, conforme aparece no ensaio Escritores criativos e devaneio (1908), quando Freud distingue dois componentes do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação com o personagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece à percepção não como um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a propósito do qual são permitidos pensamentos e com condutas com os quais o espectador pode se deleitar sem auto-acusações nem vergonha.
O mesmo gozo tem o artista com a surpresa de seu feito. Michelangelo surpreendeu-se e explodiu “Parla Moise! Parla!”. Esse encantamento expansivo do criador prenuncia um diálogo com sua criatura, que viria a inspirar um arrebatado Freud com seu inexaurível manacial de descobertas no âmbito da criatividade pura, a que ressignificou discursivamente com sua leitura. Ao indicar ao analista renovadas interpretações, o Moisés corrobora Umberto Eco (1932/2016) que, em sua Obra Aberta demonstra que quanto mais questões são postas pela obra de arte com seus mistérios incognoscíveis, tão mais aberta é sua possibilidade de gerar sentidos e ressigificações no discurso fruidor. Las Meninas, de Diego Velazquez (1599/1660) desde quando assinada em 1656 pelo Mestre pintor da corte continua interrogando sobre aquela que poderia ser apenas uma cena corriqueira nos aposentos do Real Alcazar de Madri. Velázquez compôs uma teia significante cujo sentido é a dúvida. Estaria o maior artista do Século das Luzes espanhol retratando Felipe IV e Mariana, conforme vistos no espelho ao fundo? Ou na grande tela a esquerda estaria reproduzindo a figura de um espectador ausente?
A dúvida sistemática aplica-se aos nossos sentidos imperfeitos, incapazignificada pelo sujeito como algo externo, em constante intrusão persecutóriaco com intensos conteúdos sem contornos que desestabilizam seu equilíbrio psíquico.
(continua na próxima Edição…)
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Jorge Antônio Da Silva Jornalista, Psicanalista, Crítico de artes e curador. Mestre e Doutor em artes pela PUC-SP. Membro associado á APCA Associação Paulista de Críticos de Artes. Autor de Arte e Loucura, Arthur Bispo do Rosário (EDUC/FAPESP), O Fragmento e a Síntese (Editora Perspectiva), Naïve Painters Brazil (Empresa das Artes), Wega Nery (Pantemporâneo), Jornalismo Cultural: Apontamentos, Resenhas e Críticas em Artes Plásticas (Pantemporâneo), Enriquestuardoalvarez (Trama Editorial / Quito / Ecuador). Consultor ad hoc da FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo. Docente no curso de Letras, Artes e Mediação Cultual da UNILA – Universidade Federal da Integração Latino Americana. Docente permanente no Programa de Pós Graduação do Instituto de Integração Contemporânea da América Latina – ICAL.
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