Uma hipótese interpretativa…
1 – Introdução e contextualização do “ Estado da Arte” na pré-história portuguesa
A Arte pré-histórica como tradução do pensamento simbólico humano, nasce com o aparecimento do Homo sapiens, no caso particular do contexto Ibérico, há mais de 40.000 anos.
Os actuais códigos interpretativos dessa “Arte” pré-histórica serão seguramente diversos dos que foram simultâneos com a sua produção.
Produzindo arte, tal como hoje, enquadrados em vivências, mitos, costumes e sentimentos, o “sentir” do Cosmos e a luta pela sobrevivência, norteiam por completo as vidas desses homens e mulheres.
Algumas formas de expressão artística enquadráveis no conceito de arte efémera, as artes performativas, as danças, expressões e pinturas corporais, os adornos e estatuária em materiais perecíveis como penas ou madeiras, os cantos e sons e outras dessas formas perderam-se na noite dos tempos, permanecendo irrecuperáveis para a humanidade contemporânea…
Com a sedentarização Agro-pastoril Neolítica consolidada no Calcolítico com o trabalhar dos primeiros metais, a complexidade do Cosmos é trazida para o quotidiano das sociedades e a morte e o ritual de passagem para “outro lugar” ganha importância transcendental.
Esse Cosmos e a sua interpretação, desde a observação astronómica, à consciência da finitude da vida “terrena”, da interpretação de fenómenos naturais, da dúvida existencial relacionada com forças que controlam o Universo, mística e superstição criaram um terreno favorável para uma interpretação do mundo á luz desta panóplia de conceitos e de mitos.
Florescem os dólmens como monumentos funerários colectivos e os menires ou agrupamentos de menires (Cromlechs) como marcas territoriais, e/ou monumentos cerimoniais ou votivos.
As pinturas e gravuras rupestres assumem características esquemáticas distanciando-se da arte figurativa do Paleolítico Superior.
As pinturas com motivos ondulados (Anta de Antelas – Oliveira de Frades), ponteados (Pala Pinta – Alijó), asteriformes de diversos recortes (Regato das Bouças- Mirandela e Pala Pinta – Alijó) e traços (Ninho do Bufo – Marvão e Lapa dos Gaivões), serpentiformes e pectiniformes (Lapa dos Gaivões – Arronches), geométricos (Cachão da Rapa-Carrazeda de Ansiães) reticulados (Lapa dos Louções – Arronches) e emaranhados de traços (Anta de Antelas-Oliveira de Frades), punctiformes alinhados (Ninho do Bufo – Marvão e Regato das Bouças – Mirandela), motivos radiados (Pala Pinta – Alijó), vórtex, etc. bem como representações humanas dismórficas (Vermelhosa – Vila Nova de Foz Côa), alongadas (Lapa dos Gaivões – Arronches), decapitadas (Lapa dos Gaivões-Arronches), com máscaras rituais (Regato das Bouças – Mirandela ou Penas Róias – Mogadouro), bem como danças rituais, “ Rodas ” e figuras em conjunto em actividade de caça (Lapa dos Gaivões-Arronches e Dólmen dos Juncais – Vila Nova de Paiva) ou interacção com zoomorfos (Fraga D’Aia – S. João da Pesqueira) …
É principalmente em contexto cronológico do Neo-Calcolítico, que surgem, no entender do Autor, formas de expressão artística, fundamentalmente pictórica, que poderiam ter sido executadas em estado alterado de consciência, ou que representem as vivências decorrentes dessas alterações do estado de consciência sejam elas produzidas por activação psicossomática ou pela intoxicação voluntária com preparados ou ingestão de substâncias que os desencadeiem.
- Estados alterados de consciência – Caracterização básica e contextualização clínica desses estados.
No Xamanismo moderno, ainda hoje praticado na Sibéria ou Amazónia, como exemplo, a alteração do estado de consciência para fins de “comunicação com o além” ou “contacto com os Deuses” é prática corrente.
Para esse fim poder-se ia definir um de dois caminhos básicos para atingir a alteração desse estado: por via de auto-indução, através de exercícios psicofisiológicos mediados ou não por ritmos em crescendo (tambores/cânticos…) ou por via de aporte exógeno de substâncias (ingeridas, fumadas, inaladas…etc…).
Ao induzir esse estado a percepção da realidade altera-se transformando-se ela mesma, subjectivamente e passando o sujeito a comportar-se como se essa fosse a efectiva realidade.
Sob o efeito de substâncias, mais concretamente de substâncias psicodislépticas ou aparentadas, essa alteração toma o lugar da percepção habitual, provocando, no fundo um quadro alucinatório, uma psicose induzida de maior ou menor severidade.
Este tipo de alterações é comum a um grupo farmacológico denominado psicodislépticos, de onde por corrupção linguística derivou “psicadélicos”, substâncias que causam uma percepção “diferente” da realidade ou seja, um corte com essa mesma realidade.
Como exemplo, em consumidores de dietilamina do ácido lisérgico, vulgo LSD, ou similares, extraído da cravagem do centeio, o quadro alucinatório despoletado tem contornos de realidade para o utilizador, recordando-se perfeitamente o sujeito das vivências passadas sob o efeito da substância e sendo capaz de as reproduzir graficamente.
É também comum entre usuários a percepção de que esse facto não acontece de forma tão marcada com outro tipo de substâncias, ainda que possam alterar o estado de consciência, nomeadamente os psicolépticos/depressores do SNC (opiáceos,p.exº) mas pode aparecer ainda que de menor amplitude com psicoanalépticos/ excitantes do SNC (cocaína, anfetaminas…).
Numa sociedade em que o mito ocupava um lugar de destaque na ordem social vigente, a representação de vivências de zoopsias (aranhas, cobras, animais em geral…) tão reais quanto as verdadeiras, de perseguição por parte de demónios flamejantes, de fácies disformes ou a deformarem-se ao longo do processo de intoxicação/ indução e outras percepções em corte com a realidade, reforçariam o factor de êxtase mítico-religioso proporcionado pela percepção do ”além” ou, pelo contrário e em função do “estado de espírito” do consumidor, o alívio do seu apaziguamento.
O Xamã teria aí um papel importante no acompanhamento ou fazendo parte da ritualização e nas celebrações junto às câmaras mortuárias e corredores tumulares, na exaltação do defunto e mesmo na eventual revisitação dos cadáveres para fins cerimoniais diversos.
A representação/interpretação de estados alterados de consciência passou igualmente por algumas entrevistas informais que o Autor deste artigo, profissional médico da área da adictologia, efectuou a vários doentes em tratamento, que aceitaram disponibilizar informação sustentada sobre alteração do estado de consciência que tivessem sofrido no passado, por intoxicação voluntária com LSD, cogumelos alucinogénios e ingestão de infusões de plantas com potencial psicotrópico como o Estramónio, de entre outras.
No decurso da intoxicação por psicotrópicos deste grupo, são comuns as perturbações referindo deformações do corpo ou partes do corpo de outrem na envolvente próxima ou mais ou menos próxima (cabeça a crescer; sem cabeça/ decapitado, orelhas a crescer tornando-se enormes, olhos esbugalhados e com brilho intenso, etc.) zoopsias (Lagartos, Leões, Elefantes a perseguirem o sujeito, o pânico de não conseguir escapar ao pisoteamento…) visionamento de seres diversos, de luzes e cores astrais e projectadas nas paredes, brilhos intensos dessas mesmas cores, visionamento de pessoas desconhecidas como se fossem conhecidas ou familiares… Incapacidade durante a intoxicação para distinguir o real do imaginário por várias horas.
Muito referidos nestes quadros psiquiátricos, são os “flash” visionados no céu, no tecto ou nas paredes da sala ou casa (s) tratando-se de via pública.
Surgem com frequência no quadro alucinatório, acufenos (zumbidos ou tinidos nos ouvidos).
Dos indivíduos informalmente inquiridos, todos recordavam exactamente as vivências e poderiam replicá-las em papel, com exacta definição das formas, cores e características mesmas situações que experienciaram, hoje com perfeita consciência “clínica” das substâncias e dos seus efeitos sobre a mente…
Assim o teriam feito alguns dos nossos remotos antepassados?
A hipótese de estudo científico mais aprofundado fica em aberto…
Beja, Outubro de 2017.
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Manuel Diniz Gaspar Cardoso Cortes. Médico – Chefe de Serviço de Medicina Geral e Familiar e Terapeuta Familiar pela Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar.
Fotógrafo de Natureza e Vida Selvagem desde 1980. Prémio Carreira do FAPAS e C. M. Castelo de Vide em 2016 pelo trabalho desenvolvido nesta área.
Aluno de Mestrado em “Arqueologia pré-Histórica e Arte Rupestre” UTAD – 2016/2018.
Autor dos livros ”Momentos ao Natural” (2007) e “Viagem” (2015)
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