CEM ANOS DEPOIS DE ATHENA – por Rui Lopo

CEM ANOS DEPOIS

Por motivOs que não interessa agora referir, em 2017, fui impelida a criar uma Revista que queria de literatura, poesia, cultura e artes. Um projecto aberto às novas gerações que não tendo possibilidade de publicar tanto quanto gostariam, pudessem aqui ser acolhidas. Como refere Fernando Pessoa, na Mensagem, no poema dedicado ao português mais empreendedor de todos os tempos, o Infante D. Henrique, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”, neste caso já pôde sonhar uma mulher, que com o apoio de outras mulheres e também de alguns homens, originou este projecto que intitulou, acompanhando o fio do tempo, Athena.pt, porque agora outros empreendedores de vários continentes, ditaram não ser o papel o único meio de publicação e difusão, disponível, a todo o tempo, a toda a hora, no mundo inteiro. A revista Athena surgiu em Outubro de 1924 em Lisboa sob a direcção de Fernando Pessoa, contou com cinco números, e esta nossa, bem mais modesta, já vai nos trinta números, na altura em que a Athena original faz cem anos.
Agora no final de 2024, ano de comemoração do centenário, este jovem projecto, conta e situa o historial da publicação original, pela pena de Rui Lopo, a quem agradeço a generosidade do ensaio em torno da sua fundação e vida breve. Sabemos ser quase impossível, sejam quantos forem os anos da nossa publicação, igualar o rasgo criativo de Fernando Pessoa, mas também não aspiramos a isso: apenas a fazer pequenas coisas na senda do sonho pessoano. O resto, a Deus graças.                                                                              Júlia Moura Lopes                                                                                                                                                        http://athena.pt


CEM ANOS DEPOIS DE ATHENA

I

O Modernismo como Vontade e Representação

Uma revisitação lúcida suscitada pelo centenário do modernismo que a partir de 2015 se assinalou, tomando como ponto simbólico de referência a publicação de Orpheu em 1915, assume que as revistas marcam a constituição de grupos e movimentos de ruptura histórica de ampla repercussão. Isto é, mais que assinalar uma obra ou um autor, são os encontros de autores entre si incoincidentes que nos fazem repensar a operatividade de considerar a história cultural a partir da ideia de geração e da quase contingência da afirmação grupal em projectos como o Eh Real! (1915), Centauro (1916), o Exílio (1916), o Portugal Futurista (1917), Sphynx (1917); Contemporânea (1922-26) e Athena 1924-1925). Nos últimos anos organizaram-se colóquios e publicações evocativas destas revistas. É hoje mais fácil aceder ao enorme acervo documental necessário ao estudo pelo facto de estarem em constante aperfeiçoamento importantes sítios em linha como o modernismo.pt e Revistas de Ideias e Cultura – Portugal e o Arquivo Pessoa: Obra Édita e o Edição Digital de Fernando Pessoa.

Do estudo destes projectos editoriais e da sua meditada releitura ressalta a constatação da pluralidade de vozes no seio do que hoje denominamos como modernismo, que nos leva a identificar – em certa medida – uma autoria colectiva das novas propostas literárias e artísticas que se iam apresentando e que fundas consequências tiveram. Na leitura global que propomos, é necessário relativizar a noção de autoria individual valorizando autores até agora menos atendidos, mas afinal determinantes na constituição do espírito do movimento modernista português em seus plurais matizes. Há que estudar sincronicamente o contributo dos participantes nestas revistas em torno de dois eixos principais até aqui obliterados: primeiro importará detectar se nos novos modos de assumir a Arte pictórica ou literária, poética ou ficcional, haveria ou não, subjacente, um programa teórico filosoficamente fundamentado. E de que modo os textos doutrinais e ensaísticos destes autores o revelam e explicitam, numa perspectiva colaborativa, constelada e reticular? Poderá o cultivo da crítica de arte por parte dos próprios artistas ser entendido como uma forma de autoconsciência do seu processo criativo? Por outro lado, importaria aquilatar de que modo é que as novas atitudes filosóficas da passagem do século contribuem para enquadrar, fundamentar ou orientar os novos projectos estéticos para os quais não existiam ainda possibilidades, modos ou categorias de recepção. Haveria, contrapolarmente, que esclarecer como o entendimento até então dominante da categoria filosófica de representação sofre um decisivo abalo a partir das obras de Ângelo de Lima, Amadeo Souza-Cardoso, Raul Leal, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro. Isto é: opera-se uma redefinição da apresentação artística como nova representação do mundo, em seu triplo aspecto: gnosiológico, desconfiando da representação científica ou naturalista; sócio-existencial, revelando o lado teatral de toda a actividade humana, social e política; e ontológico, mostrando todo o ser como representação prévia inconsciente, mais ou menos volitiva. Colocamos assim a hipótese de que o modernismo português supõe uma revolução filosófica prévia e simultânea, que até agora não foi assumida ou explicitada e, em segundo lugar, que os desenvolvimentos filosóficos do século XX português são impensáveis sem o influxo da revolução estética modernista e futurista.

II

Athena? Que Athena?

Um colóquio para Athena!

Tendo como horizonte o sempre incertamente delimitável conceito de moderno e de modernismo a partir do estudo das suas mais influentes revistas, em que se ensaiaram novas formas de escrever e ler a tradição e novas formas de pensar o fenómeno artístico atendendo com inaudita punção ao modo como a sua actualidade o determina, e sua época constitutivamente o enforma, colocamos a hipótese de que criar o moderno implicou que o criador se assumisse enquanto sujeito futurante de um presente incompleto.  Assinalando-se este Outono o centenário da revista Athena editada por Ruy Vaz e Fernando Pessoa em cinco números mensais saídos entre Outubro de 1924 e Fevereiro de 1925, entendeu o Grupo de Investigação Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto organizar um colóquio que pretende colocar questões e lançar hipóteses de trabalho. O colóquio tem como mote a pessoana injunção: não se aprende a ser artista, aprende-se porém a saber sê-loAthena suscita uma certa estranheza, difícil de circunscrever: porque é que aqueles que se manifestam culturalmente num gesto de fractura e cisão optaram por tal título grego? Que (neo-)helenismo é este dos modernos e em que se distingue do neo-helenismo dos renascentistas ou do dos românticos? Qual a natureza, função e valor deste título? Decoração, mais ou menos irónica? Será ele orago, inspiração ou totem? Figura tutelar ou mito fundador (contraposto a Orpheu?) E nisto tudo não se intui algo de programático?

Em que medida a concretização de Athena cumpre o plano de difusão neopagã? Como é que o neopaganismo inspirador da revista pôde acolher colaborações tidas por (neo)clássicas, românticas e contemporâneas? Em que medida é que este modo multiforme de estar na modernidade prepara ou antecipa a presença? O que fez juntar numa revista de arte, que se apresenta, pela pena do seu director, como um acto de cultura, isto é, um modo directo de aperfeiçoamento subjectivo da vida, autores tão diversos como Fernando Pessoa que aparece como teorizador da revista, como crítico, poeta e tradutor (de Poe, Pater e O. Henry), Ricardo Reis, Álvaro de Campos, que também surge como teorizador e como poeta, Alberto Caeiro, Henrique Rosa, Almada Negreiros, António Botto, Mário Vaz, o Visconde de Meneses, Mário de Sá Carneiro, cuja colaboração póstuma, escolhida e interpretada por Pessoa, como que o canoniza, Raul Leal, Augusto Ferreira Gomes, Francisco Beliz, Gil Vaz, Castello de Moraes, José Pessanha, Emanuel Ribeiro, Luiz Montalvor, Mario Saa, Cardoso Martha, Carlos Lobo de Oliveira, Antonio de Seves, Alves Martins, Francisco Costa e Alberto de Hutra?

Sentimos que falta trazer à luz o contributo propriamente filosófico desta revista para a qual Pessoa planeara convidar Leonardo Coimbra. Em Athena avulta a colaboração poética de Alberto Caeiro que Pessoa integra programaticamente ao serviço de uma nova proposta filosófica, o objectivismo absoluto; de Álvaro de Campos com seus Apontamentos para uma estética não-aristotélica, onde se procura substituir a ideia de beleza pela ideia de força, e em O que é a metafísica?, visa redefinir tal matricial conceito, o que dará azo a uma bem encenada polémica filosofante com Mário Saa que procuraremos explicitar e enquadrar. Daremos conta que Loucura Universal, de Raul Leal, é afinal um excerto de uma extensa autobiografia filosófica do autor lavrada a partir de um criativo exercício hermenêutico a partir da sua peça de teatro autobiográfico-reflexivo O Incompreendido. De relevar ainda como M.V. [desencriptado por Patrícia Esquível como sendo o crítico Mário Vaz] propõe uma reinterpretação de algumas obras plásticas e escultóricas à luz de novos princípios de teoria da arte. Procuraremos refletir sobre os elementos programáticos explícitos e implícitos na revista sob a forma de textos ensaísticos que apresentam objetivos e princípios estéticos, e pelo cultivo de várias expressões e géneros literários por parte dos colaboradores (Almada como dramaturgo, poeta e desenhador, Saa como poeta e crítico, Pessoa como tudo, etc.). Há que colocar a hipótese de haver algo de dramático, teatral, performático, em toda esta encenação editorial, em que cada participante desempenha vários papéis, de forma mais ou menos consciente e voluntária. Apontar-se-á ainda a ocorrência de tópicos simbolistas tardios, orientalistas e decadentistas, que nunca deixam de ocorrer nas revistas hoje classificadas como modernistas. Daremos especial importância ao facto de a revista ter como projeto inicial a difusão neopagã, assumindo-se como parte duma vasta e complexa campanha de repaganização da vida, da sociedade e da cultura, o que pode não a definir no seu resultado global, mas avulta poderosamente nas colaborações de Campos e Reis e, de algum modo, nas ocorrências clássicas, mais ou menos explícitas. Ficará ainda por apurar até que ponto o neopaganismo pode ser encarado mais do que como uma criação literária pessoana, como um mais vasto movimento que tem em alguns destes autores um momento de expressão, mas que nunca será interrompido na cena cultural subsequente. A crítica, tanto de literatura como das artes plásticas, surge na Athena como um lugar intermédio, de conexão, lugar medial, entre a criação artística e literária e a reflexão filosófica em si própria, continuando-as por outro modo. Talvez tudo isto se resuma, sintetize e culmine na possibilidade pioneiramente avançada por Álvaro de Campos de redefinir a metafísica como uma das belas-artes, como que implicitamente replicando à cautelar advertência de Kant a qualquer metafísica que se apresente como ciência.

Rui Lopo, Porto, Novembro, 2024

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Rui Lopo é formado em Filosofia e membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Trabalhou com o espólio de José Marinho, depositado na Biblioteca Nacional de Portugal, e com o arquivo de Agostinho da Silva, sobre quem publicou diversos ensaios e a cuja comissão do centenário pertenceu. Autor. Colabora em Raízes e Horizontes do Pensamento e da Cultura Portuguesa e é investigador do IF-FLUP no projeto Filosofia e Teoria da Arte no Pensamento do Século XX em Portugal. Ocupa-se, ainda, do estudo da receção do budismo na vida intelectual portuguesa (1850-1940).

MOVIMENTOS DE AMOR E AMADO (TRÊS POEMAS) – por Alberto Andrade

MOVIMENTOS DE AMOR E AMADO

I

Se este raio de enxofre nos deixar,
Restara-nos ainda, Joaninha,
Ouvir no orvalho as ondas deste altar.

Se estrelas, pólen, vacas e até a minha
Voz, espreitarem o ermo deste espelho,
O susto nos será. E então, asinha,

O Sol inundará de antigo anseio
O pulso escrupuloso que nos rege
E petrifica. Então, como coelhos

Bêbados, beijaremos novas vestes. Continuar a ler “MOVIMENTOS DE AMOR E AMADO (TRÊS POEMAS) – por Alberto Andrade”

CENAS PÓS-CRÉDITO – por Ailton Lima

 

A pipoca estalava na panela, e Pedro sentia que também explodia por dentro. Era um estouro atrás do outro, num ritmo que crescia, como a sensação de que sua relação com Mônica tinha chegado ao fim. Ambos sabiam, mas nenhum tomava iniciativa. Então, seguiam ali, na mesma casa, na mesma cama, sem qualquer intimidade. Casados há sete anos, três meses e dois dias, compartilharam risadas, brindes, choros e viagens sonhadas. Mas foi parado, olhando a pipoca na panela, que Pedro entendeu: alguns grãos estouram até mesmo depois que o fogo se apaga. Continuar a ler “CENAS PÓS-CRÉDITO – por Ailton Lima”

AMORIM DE CARVALHO EVOCAÇÃO DA VIDA E OBRA – por Artur Manso

AMORIM DE CARVALHO
  EVOCAÇÃO DA SUA VIDA E OBRA 
  NOS CENTO E VINTE ANOS DO NASCIMENTO  

No pressente ano de 2024, comemoram-se 120 anos do nascimento de Amorim de Carvalho (Porto, 1904-Paris, 1976), distinto intelectual que Portugal conheceu no século XX, tendo-se afirmado como poeta, ensaísta, crítico e filósofo.

Autodidata multifacetado que adquiriu um vasto saber e uma sólida cultura, obtendo o doutoramento em Filosofia na prestigiada Sorbonne com a tese De la connaissance en général à la connaissance esthétique, tendo Étienne Souriau (1892-1979) e Mikel Dufrénne (1910-1995), eminentes e prestigiados estetas que o século XX conheceu, estado no júri que lhe avaliou as provas. Continuar a ler “AMORIM DE CARVALHO EVOCAÇÃO DA VIDA E OBRA – por Artur Manso”

ATHENA REVISITADA- I-

 

Em Dezembro de 2023, o Editorial da Edição nº foi escrito por Danyel Guerra. Revisite-nos aqui!

EÇA DE QUEIROZ NO PANTEÃO?
SIM, MAS COM UMA CONDIÇÃO…

“Ao rei tudo, menos a honra”
Calderón de la Barca       

I – Eça de Queiroz. A exemplaridade da sua vida, a excelência da sua obra, a modernidade da sua herança cultural, artística, intelectual  merecem ser (bem) lembradas, são credoras de reiterados tributos. Como, por exemplo, a projeção num ecrã de ‘O Mandarim’, a montagem num palco de ‘A Capital’, a publicação de um ensaio crítico sobre ‘A Relíquia’. O que este insigne autor de dimensão universal não merece, de certeza, é “ver” seu “descanse em paz”perturbado, ter suas (prezável) memória e (impoluta) honorabilidade molestadas pelo viés da vendeta, da armação, da instrumentalização típicas da (baixa) política. Distorções que denunciou, deplorou, até execrou, com estóica têmpera e fértil poder fabulatório, seja enquanto inspirado ficcionista e talentoso romancista, seja enquanto incisivo cronista e aquilino publicista. Continuar a ler “ATHENA REVISITADA- I-“

POEMAS DE ATÁVICA – por Claudia Vila Molina

 Suburbios
Guardan sus baúles
porque la luz los enciende a medianoche
y no es necesario sonreír con esa negrura
más una sombra desconectará los lamentos
y sus ecos volverán a posarse
sobre techos de casas en fermentación
los sueños se grabarán para siempre en párpados
almas viejas serán reanudadas en viejos continentes
y un olor marino continuará rondando sobre las ciudades. Continuar a ler “POEMAS DE ATÁVICA – por Claudia Vila Molina”

NICO NÃO É SÓ COISA DE MÚSICA – por Danyel Guerra

“Sua voz soa como um computador
da IBM com sotaque à Greta Garbo ”

  Andy Warhol

O hagiológico percurso musical de Nico (aka Christa Päffgen), tende a ser, de imediato,  reconhecido por quem tenha “dois dedos de ouvido”. Sendo assim, não soará a descabido sugerir que deve fazer parte da nossa cultura geral esta sabedoria:  Nico está no epicentro de um dos discos mais cruciais da história do rock concebido como arte. Sua discografia se afirma como um patrimônio respeitável e respeitado mesmo por aqueles que não perfilham seu estilo. Continuar a ler “NICO NÃO É SÓ COISA DE MÚSICA – por Danyel Guerra”

POESIA DE DINIZ GONÇALVES JUNIOR

 

 

 

 

 

un vestido y un amor

de calcinha e camisa do river
você se insinua ouvindo fito paez

atrapalho-me ao desligar a tv cor-de-laranja:
monges lutando com bambus,
facas ginsu, nevasca no hotel overlook

um pôster de felicity jones, o tapete persa
do seu triângulo sem bermudas, miados
da gata vira-lata, musgo na banheira rosa,
um anúncio do conhaque fernet:
e a madrugada é um olho de vidro coberto
pelo vapor dos bueiros
Continuar a ler “POESIA DE DINIZ GONÇALVES JUNIOR”

A DEMOCRATURA – por Fernando Martinho Guimarães

O séc. XVIII é, costuma dizer-se, o século das Luzes, do Iluminismo.

Os seus representantes máximos, Kant, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, entre outros, têm em comum a afirmação da razão como critério e ideal da universalidade dos princípios que resultariam do seu exercício. Continuar a ler “A DEMOCRATURA – por Fernando Martinho Guimarães”

INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE CULTURA – por Francisco Fuchs

(A) O Didinium é um protozoário carnívoro. (B) Ele nada em alta velocidade pelo batimento sincronizado de seus cílios e, quando encontra uma presa, libera vários dardos paralisantes a partir de sua tromba e devora a outra célula por fagocitose.

INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE CULTURA

Apresentarei aqui os traços mais essenciais do conceito de Cultura que estive amadurecendo ao longo dos últimos 20 anos, porém desta vez sem fazer maiores referências às concepções tradicionais de cultura que são conhecidas de toda gente. O texto também será aligeirado das habituais referências acadêmicas e da análise de uma noção crucial, a noção de problema, à qual dedicarei um ensaio à parte. Por uma questão de clareza, a palavra cultura será grafada com inicial maiúscula sempre que referir-se ao conceito que estou desenvolvendo, o que não significa, obviamente, que eu esteja sugerindo a existência de uma hierarquia entre ele e os demais conceitos de cultura. Continuar a ler “INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE CULTURA – por Francisco Fuchs”

CARTOGRAFÍA DE CAGIANO (bilingue) por José Pérez

CARTOGRAFÍA DE CAGIANO

José Pérez / Venezuela

Ronaldo
hoy amaneciste niño
quemando la lluvia

Mirando el río prestado
a tus lágrimas

Tu piel semeja un reptil
de verde y espuma
tendida el alma sobre las rojas hojas
de Cataguases

Las gotas de aguas se han vuelto cenizas
las rocas dormidas estrellan tu nombre
jugando al rebelde por la muerte de otros ríos
por el llanto de otros hombres
calcinados al fuego

Desobediente
cuchillo en mano
rebanas las tardes sin adornos

Donde cortaron tu ombligo
lloran tijeras de seda
hay espadas de rosas y musgo
y pasan otros poetas con sus abismos al hombro

De equipaje llevas colmillos
de cocodrilos hambrientos
para fundar otras patrias
con Anderson Braga y Adelia Prado
nuevas sílabas ventiscas y truenos
cantos y malabares de enormes estatuas

Los pájaros que te amaron no paran de volar
te escriben y traducen tus ojos como cometas
hablan de tu inocencia Continuar a ler “CARTOGRAFÍA DE CAGIANO (bilingue) por José Pérez”

FALAR SEMPRE ALTO E CLARO – entrevista a Nicolau Saião

FALAR SEMPRE ALTO E CLARO

Entrevista a

nicolau saião

Por Manuel Beirão, Joaquim Simões  e Luís Miguel Barreiros

 


Perguntas de Manuel Beirão

“Escrita e o seu contrário”, o título do seu livro mais recente. Porquê este título, Nicolau?

NS – Porque, e isto creio que se dá com todos os autores, por cada poema que se faz, que nos chega, há outros que não se fazem, que como disse numa frase feliz Jules Morot, são só pensamento. Que esboçamos ou se iniciam ao correr dos minutos, dos fragmentos de tempo em que nos fixamos, mas que deixamos e, com frequência, nunca mais se encontram. Continuar a ler “FALAR SEMPRE ALTO E CLARO – entrevista a Nicolau Saião”

UMA FOTOGRAFIA VISTA À LU(P)A – por Idalina Correia da Silva

 

Uma fotografia vista à Lu(p)a

© Maria Correia

Entre ficar a olhar para anteontem e fazer uma expedição à Lua há curiosas semelhanças. O facto de me acontecer viver a primeira com a mesma frequência com que desejo a segunda não é mera coincidência. Sempre que revivo mentalmente os lugares por onde passei, tenha sido ontem ou anteontem, sinto-me uma espécie de lunática de trazer por casa. Ver ou rever coisas, lugares, pessoas não é mais do que apontar uma lanterna fosca desde o quarto minguante da Lua.
Só sombra, só floresta densa a irromper pelos muros colossais, pessoas de pedra e animais de vento, noites em fuga pela estrada que se mata pelas matas adentro. Aldeias que ficaram de raízes soltas ou avulsas ou sem raízes a orbitar remotamente sem gravidade nenhuma e a respirar para dentro de si mesmas como quem mergulha na costa do tempo. Carcaças de casas sem gente expedidas anteontem para a lua e, por acidente. O filme negro e a luz um cometa, a história uma dúvida, qualquer presença eternamente distante e a vida inteira pouco mais do uma aldeia vista a montante.

© Maria Correia

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Idalina Correia da Silva e Maria Correia são a mesma pessoa. Ambas trabalham em estreita colaboração, a primeira escreve, a outra fotografa e desenha.
Idalina Correia da Silva é Mestre em Filosofia pela Universidade do Minho. Sempre que pode ensina Filosofia nas escolas secundárias aqui e ali. Quando não pode, é copywriter publicitária e consultora de comunicação.

UMA NUANCE NAS NÓDOAS V – por Lúcio Valium

 

NOITE

lua de creme em jangada de cobertor azul

CADEIRA

A instituição está quase deserta. Foram ao passeio anual. Aqui permaneceram poucos. Alguns não integram. Desprezam convenções e enquadramentos. Líderes específicos e ondas bíblicas. O arejado silêncio nos corredores e nas áreas comuns é o melhor dos medicamentos. Está fresco e parece haver uma metafísica sonâmbula invertida. Como se os que ficaram estivessem a voar quietos. Num recolhimento cósmico. Só a palavra indispensável é proferida. Todas as partes do grande edifício assumem outra identidade. Os olhares veem, destacando as linhas dos momentos. Tomo um comprimido para as dores estruturantes. Caminho sem ir a lado nenhum. Posso ler as folhas que vou amontoando nos bolsos do casaco. Tenho outra cadeira para a hospedaria. Foi oferecida. É boa madeira e ajuda as peças vertebrais a ficarem mais ordenadas. Ontem o mar e a luz do fim do sol, davam à tua pele um tom de fogo. E a risca negra sobre as pálpebras fazia o belo com a rebeldia das águas. Há pouco chamaram-me para um compartimento onde estava o do 24. Anda muito devagar. Tinha passado por mim no bar. Parou para me dizer que tem ouvido uns sons na cabeça. Como um rádio sem sintonia. E que também tem sentido um paladar estranho na boca. Será de estar a ler Lautréamont, perguntou-me. Evidentemente, respondi. Mude de leitura, aconselhei. Agradeceu e disse que ia fazê-lo. Mais tarde quando entro no compartimento o do 24 come uma banana e fuma. O delegado espreita pela janela. Depois vira-se e olha-nos. Queria falar-vos do passeio, diz. Recusa da asfixia, responde o do 24 antes da pergunta. E sai. O chão acolhe afável o olhar do delegado. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS V – por Lúcio Valium”

O AMOR É E SEMPRE SERÁ SEM DÓ – por Maria Toscano

© Laura Makabrescu

O Amor é e sempre será sem dó

dedicam-nos uma música da moda
nos sítios de ‘influencers’ deste ‘now’
nós somos velhas almas de antanho
atravessámos todas as dunas e areias
sobrevivemos a todos os oásis falsos
para habitarmos, hoje, no sonho e na palavra
que o Amor é e será sempre. sem dó. Continuar a ler “O AMOR É E SEMPRE SERÁ SEM DÓ – por Maria Toscano”

TRÊS POEMAS DE Moisés Cárdenas

No sé si sea el loco que vive

desnudo con su mundo interno por las calles
No sé si sea el infame que se ríe
de sus picardías viajeras
No sé si sea el poeta desahuciado
volando con incienso
No sé si sea el enamorado dibujando
corazones en servilletas
No sé si sea el manifestante gritando
¡No a la guerra, viva el amor!
No sé si sea el principito en su asteroide
No sé si sea el recién graduado buscando poder
comprar acuarelas y vestir blancas mariposas
No sé si sea el hijo del sol entre límites y territorios conocidos
No sé si sea el militante convenciéndote
de que te unas al partido.
Lo que sí puedo decir es que soy el personaje
que te escribe diez de cada palabra absurda
Irrealizable
Ideas
Irresponsables
poemas

 En un éxtasis

escribo estos versos
para declararme lunático
por tus ojos de luna en menguante;
por tus ojos exóticos como la hermosa Pekín;
por tus manos de lirios sonámbulos.
Me declaro subversivo
por dejar el único atentado terrorista
en el costado de tus gemidos.
Me declaro mendigo
porque cada vez que te miro
extiendo mis manos para pedirte un beso.
Me declaro antiimperialista
porque busco la forma de derrumbar
el imperio que nos separa.
Construyendo el amor sin capitalismo,
sólo con teorías amatorias.
En la fragancia
de tu cintura,
de tu perfume,
de tu belleza,
de tus sinfonías.
Ni Marx
ni Lenin
escribieron en el manifiesto.
Me declaro poeta
porque el poeta penetra en los tuétanos,
en las quimeras de los astros
con estúpidas melancolías,
estúpidas utopías.
Yo otro más
te escribo estúpidas palabras de amor.
Querida mujer.
Querida hada.
Por último,
mi declaración es esta:
ya no te quiero,
no te asombres en las tinieblas,
es cierto, no te quiero.
Mi declaración es esta:
te amo.

Continuar a ler “TRÊS POEMAS DE Moisés Cárdenas”

BARRAGENS E MINAS DE LÍTIO (—-) – por Ricardo Amorim Pereira

Barragens e minas de lítio: entre o ambientalismo
radical e o desenvolvimento sustentável

Em artigos passados, escritos para esta prestigiada Revista, fiz já a crítica daquilo que me parece ser um ambientalismo radical, muitas vezes colocado ao serviço de agendas que vão para além da salvaguarda ambiental. Continuarei, hoje, nessa senda, fazendo a crítica dos que criticam a construção de barragens e a exploração de minas de lítio.

Uma das bandeiras de um certo ambientalismo prende-se com a crítica à construção de barragens. Empregam argumentos, verdadeiros, de que tais construções alteram a natureza primitiva dos cursos de água, impactando-se assim na fauna, na flora e nos ecossistemas adjacentes. Continuar a ler “BARRAGENS E MINAS DE LÍTIO (—-) – por Ricardo Amorim Pereira”

POEMAS DO LIVRO “O ENIGMA DAS ONDAS” de Rodrigo Garcia Lopes

© José Boldt

Janelas para o mundo
 
                                                             The word is a window onto reality.                                                                                                                                                                   Zbigniew Herbert

O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade

mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:

uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra.

Isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras. Continuar a ler “POEMAS DO LIVRO “O ENIGMA DAS ONDAS” de Rodrigo Garcia Lopes”

NATIMORTO – por Ronaldo Cagiano

foto by George Becker

A morte o esperava como um ventre.

Carlos Nejar

Desceu apressado o último lance da ladeira que liga a favela ao asfalto, tênue a fronteira entre dois mundos.

Embaixo, a agitação feérica em tudo difere da camaradagem do morro, onde a comunidade se (re)conhece nas solidárias demandas de cada dia. Continuar a ler “NATIMORTO – por Ronaldo Cagiano”

A ROSA TATUADA – por Virna Teixeira

 

A ROSA TATUADA

O pedido para avaliar aquele paciente surgiu na reunião multidisciplinar. A nova psiquiatra da equipe insinuou que eu seria a pessoa ideal para vê-lo, pelo fato de eu ter trabalhado como neurologista no Brasil. Certo é que essas qualificações pregressas nunca me ajudaram muito no quartel do NHS com suas hierarquias. Seria apenas uma mãozinha, digamos, ou um teste para avaliar minha experiência prévia, mas topei. Aquela era minha última semana de aviso prévio na prisão, estranho que meu expertise fosse requisitado justamente às vésperas da minha saída. Continuar a ler “A ROSA TATUADA – por Virna Teixeira”

CAPA DA EDIÇÃO Nº 29 de Setembro de 2024

 

 

 

 

 

DIRECÇÃO: Júlia Moura Lopes

DIRECTOR ADJUNTO: Artur Manso

Artigo Destaque: In Memoriam Paulo Lúcio/Lucio Valium, por Atur Manso

 

COLABORARAM:

Alda Fontes, Alvaro Acevedo, Artur Manso, Claudia Vila Molina, Danyel Guerra, Dercio Brauna, Fernando Martinho Guimaraes, Francisco Fuchs, Idalina Correia Da Silva, Jaime Vaz Brasil, Jardel Dias Cavalcanti, Lionilda Pereira, Lúcio Valium/Paulo Lúcio, Luiz Renato Oliveira Perico, Manuel Parra Aguiar, Maria Toscano, Olinda Pina Gil, Olívia Clara Pena, Ricardo Pereira, Wendrell Elias Dos Santos Gomes.

IN MEMORIAM PAULO LÚCIO / LÚCIO VALIUM – por Artur Manso

Paulo Lúcio / Lúcio Valium

A caminho da sexta década da existência temporal, o Paulo Lúcio fechou os olhos, cerrou os ouvidos, os pulmões deixaram de arfar e o coração parou de bater. A experiência chegou ao fim. Não sabemos de onde vimos, nem para onde vamos, mas a tremenda simplicidade do ser humano que se multiplica numa torrente de improbabilidades contínuas em um ambiente tão adverso é, para mim, um indicador que nesta dimensão, apenas passamos uma parte daquilo que realmente somos. Com a morte, ultrapassamos a estranheza deste lugar que nos acolhe sem sabermos porquê nem para quê!

Conheci o Paulo Lúcio há mais de trinta anos quando ambos frequentávamos a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Começamos a ser amigos nas salas de cinema, e só depois nos cafés. Eu trabalhava e estudava para aumentar a cultura e o saber nas áreas que me cativavam; as humanidades e as artes.

Na altura ainda havia todos os anos uma dezena de produções cinematográficas que valia a pena ver, a que se acrescentavam diversas reposições. Pelos meus afazeres e para não as perder, tinha que aproveitar as matinés. Percorria por isso, a quase totalidade das salas de cinema nas tardes de um qualquer dia de semana e quando estava sentado à espera que as luzes se apagassem e a sessão tivesse início, era frequente entrar, sem qualquer combinação, o Paulo Lúcio.

E do cinema vinham as conversas acerca do que interessava a ambos: poesia, música, literatura, filosofia. Cavaqueira sobre estes assuntos a partir do que os autores faziam. Nunca o habitual diálogo sobre o que este ou aquele, o que neste programa televisivo ou página de crítica se diz e escreve sobre o assunto. Ambos detestávamos a critica e a fraca qualidade que a mesma apresenta, porque sabíamos que uma boa parte dela é retomada, com breves adaptações, das revistas internacionais da especialidade que por cá são pouco conhecidas, como, no caso do cinema, os prestigiados Cahiers du Cinéma.

Era nesse espírito que bebíamos frequentemente uns copos, em grupo mais alargado, aqui e ali, e, num período de tempo, em casa dele que prolongávamos depois da jantarada simpaticamente servidos por ele e a sua companheira da altura, a Céu, a que se juntava a pequena criança de ambos, a Ana. Elas iam dormir que se fazia tarde. Nós continuávamos a noite entre copos, livros e música. A criança que veio depois, a Catarina, só a conheci em mais um acaso, anos mais tarde, num berreiro com a irmã e os pais num dia quente de agosto amenizado pelo estacionamento refrigerado de um centro comercial.

O Paulo Lúcio adorava ler textos à sorte que compunham um lote restrito de preferências, dentre os muitos que se encontravam espalhados pela mesa, e lia bem. Mas também lia aquilo que escrevia, ele e os restantes convivas. Na altura pouco ou quase nada cada um de nós tinha ainda publicado. Eu viria a publicar mais tarde, o Paulo só agora, por insistência minha e cumplicidade da Júlia Moura Lopes, diretora da Athena, que infelizmente não teve oportunidade de o conhecer, mas que admirava a sua escrita e o seu traço. Desse deslumbramento, ainda brinquei com ele e senti a ironia das palavras que ele sabia que eu apreciava. Dizia-me que eu era um bom tipo e tinha sorte em encontrar pessoas solícitas e amáveis como a Júlia. E eu dizia-lhe que tínhamos uns copos, os três, em divida uns aos outros que, agora, jamais serão retribuídos. Ele traçava com as suas palavras um círculo em torno de si mesmo, das suas e nossas circunstâncias. Já pelo fim, confiou-me um volume inacabado dos seus textos, que espero, com a conivência e bondade da Júlia, pulicar na íntegra.

Fomos sempre amigos especiais, como são os outros poucos que ainda me restam. Conhecemo-nos, convivemos durante anos, fomos cúmplices de umas coisas e de outras. Estivemos sem nos ver e comunicar muitos anos. Encontrávamo-nos quase por acaso, intermitentemente, para ultimamente estarmos mais vezes próximos e aproximados.

Neste tempo, já recordávamos muito mas voltávamos ao comentário do que conhecia bem, nomeadamente a Beat Generation do Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg. Há pouco tempo tínhamos tido, quando entre as pandemias jantamos e lhe levei o ensaio que tinha publicado acerca da morte e do morrer, voltado ao tema da estrada fora, agora um pouco fora da estrada, ou daquela pela qual íamos caminhando. E já bem por uma noite dentro, depois de ter estado a conversar com outro amigo, o Zé Vasconcelos, a propósito do filme Contos da loucura normal de Marco Ferreri, mesmo que o assunto que detinha o fio da conversa fosse a atriz que o protagonizava a bela Ornella Muti. Na verdade, não conseguia identificar nem o filme nem a obra em que se baseava. Para satisfazer a minha ignorância, em vez de perguntar ao Google resolvi ligar ao Paulo Lúcio e estivemos várias horas pela noite dentro, a trocar impressões sobre esse e outros filmes que tão bem conhecia e as obras em que se baseavam, no caso em apreço, Histórias de Loucura normal de Charles Bukowski, autor que o tinha influenciado, na escrita e na vida.

Outras vezes ligava-lhe quando passava por qualquer lugar que ambos tínhamos pisado e costumava atender numa serra qualquer onde descansava o corpo e o olhar, ou algures, junto a uma cozinha onde ultimava uns petiscos para a seguir os partilhar tranquilamente com alguém especial.

E era assim entre nós: conversa inútil sobre coisas fúteis. Sempre com a sua ironia provocante para manter o fio do tempo bem esticado entre todos os momentos, os que passaram e os que se desejavam, plasmado no único tempo que interessa, o presente de então.

Agora o Paulo Lúcio passou a habitar outra dimensão. Melhor, pior, igual, assim, assim, só ele saberá. Como refiro e tendo a acreditar porque de facto sou crente, a eternidade pode ter que ver com as coisas terrenas, mas não é espectável que uns e outros se encontrem tal qual se anuncia.

Por cá somos imortais enquanto formos recordados. Em outras dimensões nada sabemos e com certeza não seremos tal qual aquilo que por aqui fomos. Querido amigo, quando te digo até sempre, é mesmo isso, porque a conversa acabou e não voltaremos a habitar os mesmos lugares na companhia um do outro. E suspeito que na eternidade não nos reconheceremos porque por aqui vemos em espelho e na perpetuidade face a face. Mas o que isso realmente significa, por agora, só tu é que sabes!

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Artur Manso, nasceu nos idos de 1964, pelo outono, ao cair das folhas, na aldeia transmontana de Izeda. Professor universitário que ao longo do tempo se tem dedicado à aprendizagem e ao ensino de pequenas coisas sob o signo da estética e da ética, do lugar que nos cabe no mundo e de como a beleza nos pode tranquilizar.

UMA NUANCE NAS NÓDOAS IV – por Lúcio Valium

Fotografia: © Carlos Silva,

BECOS

Parece que só ouço ecos e vozes imberbes. No grande átrio os serventes espalham neurose. É preciso nervos de aço. Uns tiros para o ar seriam ouro. Dói-me o corpo. Sinto frio e arrepios. O peito rasga-se quando vem tosse. Arrasto-me junto às paredes intoxicado em fármacos. Gemem articulações e narinas. Parece que fui espancado. Era bom ouvir a chuva contigo. E oferecer-te flores, delírios, prosas e gerúndios.

A diretora já teve outras vidas, penso. Continua a aceitar o meu jogo. Deixa-me dormir nos intervalos e pegar em livros sem avisar. Acomoda as minhas falhas. Emociona-se com as minhas fugas. Permite que me abram compartimentos pouco usados. Aí saboreio linhas de tempo, uma fuga sonora. Lavo a gordura do interior craniano. Limpo cicatrizes e invento monólogos implacáveis contra este real podre. Mantenho-me à margem das imposturas diárias. Sou um ser inviável, dirão alguns com a sua pragmática. Ou intratável, considerarão outros. Em sua intocável gravidade, não verão melhorias, digo eu. Estou vivo e já não tenho muitos anos para enlouquecer. É um pensamento que me preocupa. Estaria interessado em abordar o assunto. Saibam senhores que caminho cada dia para ser mais livre e encontrar companheiros da mesma laia. Dos que não fazem vénia às montras, onde tirania e santidade  são vendidos como salvação. Negócios de carne humana e sangue da terra. Como diria o do 24 uma história de terror fino corre nas veias grossas do poder. A eternidade é um programa de injetar cegueira nos humanos. Vou a outro lado. Continuar a ler “UMA NUANCE NAS NÓDOAS IV – por Lúcio Valium”