UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (2) – por Lúcio Valium

 

APARELHOS

Comi no meio de um ruído imenso. Tomei dois cafés. Procuro um lugar fora do mecanismo. No futuro será mais difícil de encontrar. Cada vez haverá menos lugares desses. Atravesso as compridas artérias institucionais e fecho-me numa sala para escrever. Não há música mas podem enviar-se escritos. É uma área de organismos tecnológicos. Uma visão da vida controlada nos nossos tempos. Fórmulas dados sintomas diagnósticos perfis são palavras que saltam destes aparelhos. Tudo em gráficos e grelhas. As vidas como gravações para consulta pragmática. Nada que lembre coreografias sexuais desmesuras sem palco ou o espanto de quem se perdeu nas cidades e nas vidas de outros.

Tenho visitado o escritório. Vejo que os livros se amontoam.Esperarei por ti na hospedaria e continuaremos o vinho e as conversas sem rumo.

LENTES

As lentes são janelas molhadas pela chuva. Permitem ver os disfarces da cidade. Aqui morrem árvores na intempérie. Como os cavalos abandonados pela vida um dia foram fortes. Os grandes ramos fecham os olhos. Como os ossos dos cavalos. Adormecem para lá da eternidade. Os seus sonhos são levados pela ventania. Para longe de nada. Também a mente do homem das lentes irá um dia dormir à chuva e será levada pelo vento como a poeira dos cavalos.

BENTO

Há várias bolas suspensas por um fio que vem quase do tecto. Parecem pêndulos. Podem ver-se as horas em grandes ponteiros. Alguns postes de ferro trabalhado suportam a estrutura que cobre a estação.

Os relógios funcionam ininterruptamente como os comboios. Nunca há silêncio. Namora-se antes da partida. Bancos confortáveis de madeira macia. Por cima do grande túnel uma casa em ruínas está repleta de verde. Podem ver-se as traseiras das habitações. Há sempre alguém que corre. Daqui todos os comboios saem para o fundo negro da terra. Há putas gastas à espera de velhos bêbados que dormem.

Um cheiro e um movimento sem nomes.

Era este o apontamento que estava no pequeno caderno azul. Continuo a ir até lá.

A duração e dignidade do ferro parecem mais interessantes do que os materiais descartáveis de agora. As estações são lugares de ambiguidade risco e geometrias íntimas. Um frenesim para seres em trânsito e um medicamento para um homem que deambula.

FURTIVO

Hoje sou um espectro. Quase sonâmbulo. Mal me mexo.

Nos consultórios e escadarias só se ouvem sons agrestes. Os figurantes ostentam uma música intratável. Uma demência programada. A ausência e paralisia que revelam são assustadoras. Tudo preparado e divulgado nos ecrãs centrais.

Fico imóvel em silêncio de gozo saboreando violentos golpes no esterco deste real.

Foto de Paulo Burnay

MESA

Olho pelas grandes janelas do segundo piso. As gaivotas são riscos negros ao longe. Carvão desvairado. Há árvores idosas. Vestem uma geometria impoluta. E há enormes estruturas em ferro que cravam as unhas no chão ferido. Tudo muda. Seguindo directrizes de colarinho perfumado.

Agora os corredores estão silenciosos. Podem ouvir-se passos femininos no andar de cima. Um rigor de saltos altos. A máquina de escrever sonha o imprevisto.

A fuga das letras para esfaquear os segundos. Uma doença mental faz o seu percurso. Talvez o disfarce contínuo seja a perfeita medicação. Frase usada várias vezes pelo doente do quarto 24. Um homem que conhece as marcas dermatológicas e o afastamento. Ele sabe dos cortes. E do andar sozinho.

Eu encontro a acalmia na cozinha da hospedaria. A tua voz e a mesa de madeira. Um vinho.

PRESENTE

Assino as folhas e desapareço. Encontro sossego numa sala grande. Há mesas e estatuetas de corpos. Anatomias. Cheira a produtos químicos e circuitos psiquiátricos. Posso ouvir Cage e escrever. Superando gritos vindos de outros pisos a chuva fura as janelas. Vejo-a no seu existir sonoro em duelo com as vidraças. Assim fruo as águas dementes.

Mudo a agulha para Ferré. Velho companheiro de noites de aguardente.

É um felino confronto que desvendo. A recusa dos trâmites da formatura.

Queriam um bandalho bem comportado a obedecer a decretos. Algo pueris os vossos axiomas de controlo caros engalanados. Eu invento momentos nas instalações enquanto os senhores engendram a morte e a usurpação. É assim directamente assumido este jogo inclemente.

Seguro uma vela na quase noite. O escritório está desarrumado e tenho poucos cigarros. Vê-se o trânsito de livros e há apontamentos soltos. Cadernos escritos. Sente-se a tua presença. É uma luz fêmea. Fumo lentamente sem saber se virás.

A vela acaba. Adormeço e anoitece. Ferré ocupa a escuridão.

AUSÊNCIAS

Encontro um compartimento vazio. Parece uma antiga carruagem de comboio.

A cidade lá fora é um caderno de gatos. Alguns fumam introspectivamente no sofá  da suite. Concebem finança. Outros usam o cano apontado à têmpora como linha argumentativa. As páginas da cidade tapam os quartos onde há gatices engravatadas e cuequinhas de renda. É um cinema que os anjos visitam para aprender a arte do abandono. Daqui só vejo alguns pedaços do vaso encantado. Escritórios de crime hotéis de esquemas prédios eloquentes. Lugares de pragmática onde se fabricam peças de usurpação. Banalidades dir-me-ão.

Algumas lojas vendem caprichos aos garbosos personagens das redondezas. Elegantes veículos transportam seres envernizados e proficuamente embrenhados na teia carnívora. Questões preciosas os ocupam. Usam cosmética numa arte sanguessuga.

Mas não haverá outro cerimonial. Será um pandemónio contínuo.

Daqui falo. Entre estes tapumes onde se trabalha sobre mentes e corpos escrevo na pele dos dias. Quer dizer falo do tempo em que vivo. Isto é um desvio. Uma recusa em desuso. Isolo-me e evito os funcionários injectados de miopia. Tento escapar do mecanismo assassino que esventra os programas mentais. Os usurários considerariam uma brincadeira este duelo esta forma de equilibrismo. Sei que a cidade está lá fora e aqui como um tipógrafo o meu ofício é de palavras. Ainda há pouco voavam numa região distante. Recebo-as. Dou-lhes chão.

Assim procuro subverter o tempo. É a minha forma de injuriar a moral que escorre por estas paredes. Levantadas por meninos astutos para formatar histórias.

E é negar as prescrições forjadas para a reverência à fraude.

 

MELANCOLIAS

A melancolia de um ramo desolado e uma chuva forte como o fogo. Musical e desvairada no seu grito de eternidade. Um bálsamo no regresso a este organismo de voracidade e vacuidade. Uma fúria sonora para combater o ruído nos corredores infames. Mantém-se aqui a doença normal. Seres anestesiados pelo vírus da mesmidade. Pobres circuitos falantes deambulam cumprindo não sabendo o quê. Saio da colérica sala de reuniões para o gabinete nas águas-furtadas. Reencontro os invisíveis fios de ligar palavras. O tempo de esperar fluxos e colagens. Mergulho numa semiótica íntima. Olho os dedos e as letras como pétalas raras. Vestir-te com elas e ver-te deslizar entre as águas e os limos. Rodeada de prateados peixes azuis como noites. Libertando as cores o teu corpo nada suavemente com a lua desenhando a ondulação dos lençóis. Há pétalas que voam deixando corpo e sonho. Vão deitar-se na lua com os peixes raros. E as tuas mãos tocam as noites que se libertam do meu corpo.

Alguns jovens pacientes vêm interromper o silêncio que fruía. Parecem pássaros irrequietos. Repetitivos e previsíveis. Poucos irão tentar desvendar os poços profundos que o real esconde. Um dia serão muitos deles perfumadas e egoístas flores de plástico. Animados pelo espectáculo da história comprada ou violentamente usurpada pisarão sem pensamento outros insectos humanos escravos da grelha absurda.

Sinto que o regresso penoso a estas salas é como deixar uma boa medicação abruptamente. Mas as armas estão escolhidas. Nada de tréguas aos gestores de vidas e nada de piedade pelos domesticados. Usar os instantes para o diálogo íntimo e a partilha dos corpos. Inventar grandes ramificações mentais e murmúrios psíquicos intensamente vivos. Para de um tempo fazer um caminho.

O nosso canto no planeta.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!