QUEM TEM OLHOS VAI A ROMA CITTÀ APERTA – por Danyel Guerra

Ingrid Bergman e Roberto Rosselini

“Sou uma amadora e faço questão de continuar sendo. E faço questão de não ser uma profissional, para manter a minha liberdade”.

Clarice Lispector

Complimenti, buon compleanno, Roberto!

‘Wuthering Heights’. À introvertida e melancólica Emily Brontë foi suficiente publicar, nos seus 30 anos de vida,  um solitário romance, sob o pseudônimo Ellis Bell, para ter lugar cativo no panteão dos imortais da arte literária. De semelhante privilégio se poderá orgulhar a posteridade de Roberto Rossellini. Embora tenha sido imensamente mais prolífero na obra e longevo na idade, ele teria pleno direito de figurar na galeria dos intemporais da sétima arte, mesmo que só tivesse assinado um único filme. Um filme único, enfatize-se.

Numa histórica, histriônica e histérica entrevista concedida aos Cahiers du Cinéma ,o cineasta Orson Welles respondeu mordaz, a uma pergunta sobre Roberto Rossellini.

“Desse, vi todos os filmes. É um amador”, menosprezou, soltando  uma risada sardônica(1).

 Virando do avesso o menoscabo do Citizen Welles, eu não hesito em afirmar que Roberto Gastone  Zeffiro Rossellini, nado e morto na cidade (e)terna, foi mesmo um amador. E foi um amador  na genuína etimologia do termo em latim (amator, aquele que ama). Sim, ele amava e amava acima de todas as coisas o Cinema, tornado, também por  sua responsabilidade, uma arte-linguagem terna e fraterna. As lentes da sua objetiva eram a(r)madas  a fim de olharem  sempre de frente para a realidade, olhos nos olhos, com o claro intuito de a apresentar sem retoques, mais do que a representar com enfeites. Afinal, quem tem olhos vai a Roma.…

PULSÃO DOCUMENTALISTA

a época em que realizou Roma Città Aperta (1945), a capital da Itália sofria os efeitos das atrocidades cometidas pelo tropel nazista.Viviam-se anos de agudas carências e severas privações.  Apesar da escassez de película, Rossellini foi registrando documentos sobre a cidade subjugada. Alguns dessas captações mais acutilantes seriam editadas no filme precursor que concebeu ao longo de nove meses, enquanto sua città estava sujeita ao jugo da Wehrmacht.  Logo no início de ‘Roma…’ testemunhamos uma dessas inserções, na cena da marcha de um pelotão de soldados por ruas desertas e inóspitas.

Outra  manifestação desse recurso é a sequência, detentora de uma veemente pulsão documentarista, do ataque guerrilheiro a uma coluna do exército alemão.

Os estúdios –nomeadamente a Cinecittà-, estavam inoperacionais,  destruídos pelos ataques da aviação aliada. Rossellini e sua intrépida trupe se viram  na contingência de rodarem em cenários reais, seja nas sequências de exterior, seja nas de interior. O cast secundário é, no essencial, constituído por atores amadores, mais precisamente, por  “não-atores”, oferecendo ao cineasta uma chance soberana de afirmação de sua lendária capacidade de improvisação no plateau.

Tendências que ele já esboçara  nas rodagens das três anteriores longa-metragens. Os figurantes de Roma… encarnam suas personagens da vida real, quer se trate da população sequestrada pelo terror, seja o caso dos boches, a que dão corpo soldados alemães, feitos prisioneiros, na sequência da libertação.

UM CINEMA TORNADO TERNURA

Num jogo (limpo) de palavras  se poderá sugerir ser o “Amor” o outro nome de Roma…, o filme possível num tempo impossível. Um sortilégio que em muito transcende este recorrente exemplo de anagrama. Só o Amor supera o medo. Ele age como uma energia salvífica. O Amor abate até os muros da vergonha. Eis a superior  posição (est)ética do filme, parido a forceps, mas ainda de todo pujante  quase oito  décadas transcursas. O espectador é estimulado a perfilhar a famosa definição que  Cesare Zavattini cunhou de neorrealismo. “Consiste simplesmente em seguir um ser com Amor.”  Segundo as concepções (est)éticas do Cinema de Rossellini, a ternura se insinua  como uma das mais prezáveis posições morais. Julgo não ser especulativo arguir que estamos perante um cinemético, afeito a veicular os valores de um utilitarismo consequencialista, promotor do primado da bondade de atos solidários e humanitários, em prol da felicidade e bem-estar coletivos.

Entre outras virtudes, Roma… anuncia uma singela sinceridade: o ideal de um Cinema de autenticidade, de um Cinema de respeito pelas coisas, tal como são na realidade. “As coisas estão lá, porque manipulá-las”, alertava, de modo reiterado, o regista. Esse novo (e assético) realismo deveria, portanto, ser descodificado como um “mais realismo”. Ross acreditava de  boa fé que os desvios subjetivistas se podiam atenuar –anular até—no acatamento de  uma intransigente objetividade. Equilíbrio, sensatez, parcimônia, equidistância que viria a reeditar em Paisà (1946), o segundo quadro de um épico tríptico sobre o Amor, a Guerra e a Libertação, que convém visionar e venerar em sequência.

Germania Ano Zero (1948) desdobra-se como a terceira película da trilogia. Somente no contexto de uma visão cotejadora, integrando igualmente esses dois longas, será possível estabelecer uma abrangente descodificação/ assimilação das múltiplas expressões e mensagens de que Roma… se faz arauto.

Essa tríade interage, constituindo uma espécie de trágico afresco, tributando a capacidade de resistência de homens e mulheres do povo à crueldade e ao cinismo de todas as guerras. Algumas sequências símbolo dessa tenacidade, podem ser testemunhadas em Paisà, o filme em que Roberto  terá  exponenciado o amplo leque de trunfos do seu universo neorrealista.

Por mais estranho que pareça, pertenceu a um filofascista a autoria  de um elogio tão inesperado quanto insofismável.  Num discurso proferido a 21 de novembro de 1949, António Ferro, oficioso ministro da Propaganda do regime de António Oliveira Salazar, apontou-o como exemplo de filme de cotidiano, “digno de ser protegido.”

Visionando  ‘Paisà’ um bom par de vezes, fiquei com a nítida impressão de que não estava perante uma encenação. Me convenci que o “cameraman” Rossellini se  “limitara” a captar uma verdadeira realidade. Conforme sabiamente sublinharia André Bazin, Rossellini “realizou os fatos”. Procedimentos generosos que correram o risco, evitando-o, de engendrar, todavia, a mácula viciosa de uma reprodução mimética da realidade.

Eis o real captado, capturado, porém, apto a ser difundido sem truques esteticistas. Duas décadas antes da eclosão do Cinema Novo brasileiro, o neorrealismo italiano proclamava  o desiderato de ser “uma questão de verdade e não de fotografismo”, conforme a teorização de Glauber Rocha.

Na busca da (sua) verdade, ciente da condição de “estilo de época”, o neorrealismo italiano  anunciou desde o início manter uma objetiva atenção pela problemática sócio-econômica vigente, manifestando sua opção preferencial pelas classes trabalhadoras e pelas camadas populares, seu dia a dia de luta, suas aspirações políticas e sociais.

Rossellini vincou esse signo distintivo no núcleo central da trama de Roma…’. Embora se tenha vinculado a um modelo muito mais mitigado do que a abordagem engagé de  LuchinoVisconti, patente no telúrico La Terra Trema (1948). Preocupação que ele nunca permitiu que se confundisse com apologia demagógica, proselitismo acrítico ou panfletarismo exaltado, tão apanágio de um outro realismo, o socialista.

Em Roma… ele não sacraliza, não mi(s)tífica, não santifica a classe operária.  Além dessa fidelidade ético-ideológica, seus conceitos neorrealistas  procuravam sublinhar a recusa dos chamados  “efeitos de Cinema”, em prol da assertividade  de uma narrativa de fluxo diacronicamente linear, com mínima turbulência diegética, onde a ficção narrativa  se  deixa prazerosamente “contaminar”  por um approach documentarista. Abdicação de artifícios que se prolongava no trabalho de edição, através da promoção daquilo que poderia qualificar como uma “não-montagem”.

EM PORTUGAL, O FACISMO VAI CAIR…

Ao visionar  ‘Roma…’ e ‘Paisà’ num cinema dos EUA, Ingrid Bergman ficou tão encantada,  a ponto de  escrever  ao diretor  romano,manifestando  o desejo de  integrar o elenco de um filme seu. Desiderato concretizado  em 1949, com a escalação de Bergman para o papel feminino protagonista  (Karin) em ‘Stromboli, Terra  di Dio’(1950). Foi o início de um estrombólico  romance entre os dois, nos sets e fora deles.

Uma das mais apoteóticas sessões de Roma Città Aperta terá sido aquela  que aconteceu em Portugal, no ano de 1973. Mais precisamente em Lisboa,  na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito de uma retrospetiva  de sua opera omnia. Quando a projeção terminou, coroada de aplausos, o regista  profetizou: “em Portugal, o fascismo tem os dias contados…não vai  demorar a cair!”  E uma longa ovação sacudiu o auditório. Como se estivesse  animado pela vidência de uma pitonisa, esse “amador”  continuava  acreditando que as forças amadas da liberdade voltariam  a  vergar o arbítrio  instalado pela opressão. Os bons auspícios dessa premonição não demorariam a cobrar seus efeitos. Lisboa não teria de  esperar nem um ano para se tornar igualmente uma città aperta. 

NOTA

  1. Cahiers du Cinéma, nº 87, de setembro de 1958, reproduzida em A Política dos Autores, Editora Assírio & Alvim, Lisboa, 1976, p. 276.

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.