HARATINES EP7 – Jonuel Gonçalves

Nota prévia do autor:

“Haratines” é romance em preparação, baseado em contextos e lugares reais, mas os personagens e situações são imaginados por mim. Uma exceção é o texto com sub título “235” – que aqui envio. É acontecimento verídico até nos personagens.

Ultimo trip (desta vez) a Ouidah, Uidá ou Ajudá

João Baptista saiu do hotel em Cotonou e entrou no carro com o professor Da Cruz novamente a caminho de Uidá, às vezes distraído ou traído pelo sub-consciente dizia Ajudá e o professor sempre dizia pensativo “quem sabe não seria preferível a cidade ter dois nomes, como acontece com Anvers-Antwerpen na Bélgica” e lá foram apenas para uma conversa relax com a diretora do museu no velho forte português que Salazar mandou incendiar em 1961 e cujo nome, agora ele sabe, passou para ele próprio João Baptista. Sem nenhuma razão a cabeça de João Baptista enquanto ganhava paz na paisagem litoral beninense  lembrou-se da reportagem no “Libération” sobre  Henri Lopes intitulada “SIF (sem Identidade Fixa)” à mistura com passagens do livro de Dan Franck “Paris ocupada”. Passagens mais ou menos assim: “Roman Kacew, nascido em Vilnus [Estónia] trocou a França pela Argélia em junho de 1940. Chegou à Inglaterra num cargueiro, alistando-se na RAF e foi metralhador no grupo Lorraine, ferido em 1944, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário de Romain Gary (…) Joseph Kessel já tinha publicado livros nessa altura, foi aviador na primeira guerra mundial, meteu-se na resistência na segunda, recusado como combatente armado por estar meio velho e como judeu foi proibido de publicar na França ocupada (…) não se sabe onde Kessel e Maurice Druon conheceram Anna Marly, talvez num clube de Saint James, em Londres, no meio da guerra, onde também apareciam Romain Gary e Emmanuel d’Astier de la Vigerie. O nome verdadeiro dela era Anna Betulinskaya antiga bailarina do Ballets Russos depois disso cantora de cabarés parisienses e mais depois ainda conseguiu chegar a Londres onde arranjou trabalho na cantina do quartel general das Forças Francesas Livres e compunha músicas, uma delas baseada na batalha de Smolensk da sua saudosa Rússia.  Kessel mais um sobrinho mais o Druon apanharam a música impressionados com o som da marcha na neve de guerrilheiros russos, meteram-lhe letra, ensaiaram num piano e o Emmanuel levou clandestinamente para França com o título de “Canto dos Resistentes”.  Canto ou Marcha depende das traduções e João Baptista pensava nessas passagens do livro devido à grande mistura de origens das pessoas, das letras e músicas, comparava até por saber por onde entrou na vida e estando o mundo com está não custa muito imaginar um cenário adaptado daqueles anos quando o mundo também tinha deixado de ser lugar adequado para viver.

Aquilo não era turbilhão de pensamentos era total confusão mas é assim mesmo que a História está, ou seja, todos os países, todos apresentam uma história oficial maravilhosa, são exemplo para os demais e nunca fizeram mal algum aos demais, portanto, no mínimo tá confuso explicar como o mundo ficou conduzido por elogios a quem espatifou isto tudo e vai continuar, daí ser urgente chegarmos à História Comum da Humanidade com base no que aconteceu, então o que daqui a dias vamos fazer oxalá dê certo oxalá nos avance para escrevê-la e acabarmos com as imposturas de uns contra os outros sem sentido porque uma História assim só espatifa mais.

Abriu o iphone e postou no blog o texto de difusão prévia ao que se vai fazer daqui a dias, em menos de uma hora estará em 800 pontos fixos ou móveis das redes sociais em quatro línguas:

Título :235

Podem até dizer que a Mauritânia é hoje um país de “escravatura residual”, mas este residual significa milhares de vidas sob submissão e as vidas mauritanianas importam tanto como quaisquer outras vidas. Podem também dizer que é escravatura doméstica sendo as vítimas próximas de família dos donos. Ok, alguém aí disposto a ser escravo doméstico integrado em alguma família?

Não, com razão porque submissão não é condição humana. A campanha atual tem séculos pois foi aqui que começou o maior tráfico de seres humanos de toda a História humana embora o conceito de humanidade não existisse entre os traficantes promotores, beneficiários e seus agentes de guerra das narrativas focados em desculpar os crimes desses promotores e beneficiários, dizendo e escrevendo que tinham apoio de pessoas dos próprios locais onde caçavam seres humanos e naquela altura a escravatura era normal aceite por toda a gente.

Mentira filha da puta. No fundo ela revela um desgraçado peso na consciência pois eles sabem muito bem que apoio dalguns cães daqui não anula o crime de ninguém, nem dos cães nem dos seus donos. Senão, num julgamento por assassinato ou roubo o réu pode pedir absolvição por não ter sido único a matar ou roubar.

Nesta secular guerra de narrativas outras vozes conseguiram atravessar as brumas e chegar até nós provando que aquilo era crime e gerava revolta mesmo nos países dos promotores e beneficiários, pois mesmo nesses países sempre foi uma ínfima minoria que teve ligações aos promotores da escravização e a maior parte dessas populações não beneficiou nada com ela.

Até vigas mestras da civilização ocidental deixaram testemunhos e, por exemplo, Aristóteles escreveu que em Atenas havia quem estivesse a favor ou contra a escravatura informando assim que na Atenas milênios antes de Cristo lá estavam inimigos da escravização. Pulando até ao século XVI, Cervantes num tom de falsa ingenuidade e surpresa para driblar a censura fez Don Quijote perguntar escandalizado perante uma coluna de pessoas agrilhoadas “mas o rei tem escravos?”. Cervantes não escrevia em palácios escrevia no meio de outros como ele vítimas do absolutismo ibérico que insatisfeito em apenas asfixiar suas próprias sociedades já então espalhava estragos abissais pelas redondezas dos mares por onde navegava.

São séculos entre ambos os textos demonstrando a grossa mentira de consenso favorável à escravização. Já vamos a outro exemplo voltado especialmente para Arguim e Lagos.

Sim senhor, concordo que as gerações seguintes não podem ser responsabilizadas por crimes cometidos há séculos ou simplesmente antes delas virem à Terra. Ainda assim há gente viva hoje que fica do lado dos escravocratas só porque eram conterrâneos, então essa gente vira cumplice dos promotores e beneficiários da escravização.

Isto vale para aqueles que perseguem ou fazem fake news contra os atuais abolicionistas mauritanianos e para os negacionistas da História de séculos precedentes. A Mauritânia é talvez a única presença viva nos dois momentos.

Terras de criação da palavra Mouro em parte berço do império Almoravida e sua base de expansão desde as proximidades do rio Senegal até Lisboa, Córdoba e Saragoça, após a queda deste império em 1147 a vida nestas areias, rios e mares esteve séculos sob a ameaça de escravizadores que armazenavam em Tomboctu e rodavam pelas rotas saarianas. A ameaça vinha de Leste e muitas fixações perto do mar vinham da vontade em se afastar dessas rotas e raios de agressão.

Mas a partir de mais ou menos 1430 a ameaça estendeu-se ao mar também com escravizadores que por ele navegavam. E foi rápido, em cerca de 15 anos esta população ficou entalada entre duas empresas que viam-na como matéria prima. Os navegantes do absolutismo ibérico fizeram várias tentativas de passar Ras Bojadur falhando mas, pelo menos num caso, aproveitaram para ir às Canárias onde, segundo a história oficial, fizeram prisioneiros. Havia guerra?  Havia sim, na narrativa, quer dizer onde está “prisioneiros” leia-se “escravizados” coisa que já faziam antes aqui pelo litoral a norte, em pequeno número de cada vinda à volta das quinze ou vinte vidas que para eles não importavam.

Em 1434 passaram Ras Bojadur e voltaram para a terra deles comandados por Gil Eanes, natural de Lagos, Algarve, o mesmo comandante das mencionadas capturas nas Canárias que prosseguiram no mesmo baixo número principalmente após terem passado a sul de Ras Nouadibu, para eles Cabo Branco talvez pela brancura das areias e reflexos até ao céu, muito poética para quem está de passagem mas vida dura para quem lá  mora e mora hoje muita gente, é o maior porto do país criado para exportar minério de ferro melhor que exportar escravos.

Em 1444 é inaugurado o grande tráfico negreiro sulatlântico com uma armada de seis navios comandada por Lançarote de Freitas, também de Lagos, sendo Gil Eanes comandante de uma das seis embarcações. Numa madrugada primaveril antes do sol nascer marinheiros saíram dos barcos e deram caça á população de duas ilhas da zona de Arguim – Nar e Tinda – capturaram 235 e os demais habitantes fugiram não se sabe para onde mas fugiram e desde então a população da área nunca mais foi do tamanho que era. Levados para Lagos os 235 foram vendidos em leilão à entrada da vila.

Aqui entra em cena outro relato  num ambiente de deixar atrás o inferno de Dante. Gomes Eanes de Zurara estava lá como também estava o Infante Dom Henrique, mestre da expansão marítima dos mais celebrados heróis portugueses, embora uns ingleses digam que ele era inglês porque a mãe era British enquanto outros British  sempre a olhar os portugueses com olhos supremacistas dizem entre sorrisos que se o Infante foi o que foi deve-se à mãe que teve. O problema para esses supremacistas é que o Infante foi várias coisas, algumas delas inaceitáveis pelos negacionistas, ingleses incluídos.

Lançarote disse ao Infante da urgência em desembarcar os escravizados porque estavam “corregidos e doentes”, mas logo ali lembrando disciplinadamente que o Infante tinha direito a um quinto dos lucros da venda. Os “corregidos e doentes” eram de distintas cores  como são os mauritanianos de agora, bidanes, haratines, etc. e essa de “corregidos” lembra anos de escola primária quando a professora de régua na  mão dizia que nos ia dar uma merecida correção ou um corretivo por não nos sabermos comportar. Só lembra porque aqueles chegados a Lagos em agosto de 1444 tinham estado mais de um mês nas mãos de ferramentas do absolutismo em espaço fechado sobre ondas.

Zurara contornou a censura como pode, impossível saber se conseguiu contar tudo mas contou o suficiente para vermos o horror presenciado pelo Infante Dom Henrique símbolo da nobreza do alto do seu imponente cavalo e por quase todo o povo de Lagos e arredores, quer dizer duas camadas do regime instituído pelo absolutismo com sentimentos e interesses opostos porque uma mandava – e “corregia” – e a outra servia.

Demoraria séculos até o povo acabar com a nobreza mas o leilão de Lagos em oito de agosto de 1444 foi um daqueles momentos de tensão entre ambos com o detalhe ali do povo ser de servos e de escravizados. O relato de Zurara é dos melhores de toda a literatura mundial nesse detalhe: mostra o sofrimento dos escravizados entendido pelos servos.

Após a venda os agentes de Lançarote ou do Infante procederam à distribuição das “peças” pelos novos donos arrancando filhos às mães (eles sempre capturaram e venderam crianças) maridos às esposas, e as vítimas gritavam imploravam batiam no rosto cantavam as melodias desesperadas ainda hoje existentes, atiravam-se ao chão no fim das contas – achamos hoje – já só queriam ser vendidos juntos com os seus. Destruição humana completa, crueldade sem limite e o povo de Lagos e arredores perante aquele inferno ficou “em grande alvoroço” como escreveu Zurara, nós hoje diríamos revoltado e agitado. Mas ali estavam as forças da nobre “correção”.

O próprio Zurara, cronista oficial viu aquilo como impiedade visão dura nos termos da época e nesses termos a sua visão e o “alvoroço” popular decidem essa batalha na guerra das narrativas. Não, a escravatura nunca foi aceite pelas pessoas normais, é com a rejeição destas que tem de entrar em todas as Histórias. Lá nos países de onde saíram os escravizadores as pessoas têm de escolher o seu lado neste confronto de Lagos: do lado de quem recebia comissão de vinte por cento na venda de vidas humanas ou do lado do povo?

Manobrem como quiserem, um terramoto desta magnitude durante séculos deixa traços ecos e marcas até os whatabouts serem objeto de acordo. Isto aparece quando menos  esperam sem consideração pela nervosa gritaria negacionista “vocês estão a ofender a sujar a nossa gloriosa história, não foi nada disso e já foi há séculos não se fala mais nisso, pronto, acabou”. Ah não, não acaba assim, ano passado saiu em revista cientifica internacional detalhado trabalho coletivo dirigido por professora de Coimbra sobre 158 cadáveres aparecidos em 2009 num terreno escavado em Lagos para fazer parque de estacionamento, ossadas de escravizados depositadas como lixo entre os séculos XV e XVII. Há dias um jornal online de Lagos transcreveu artigo acusando “o Infante Dom Henrique e seu criado Lançarote de Freitas” de se dedicarem a uma atividade “vil e ignóbil (…) o tráfico humano” indagando se faz sentido manter o nome de Lançarote de Freitas numa rua de Lagos pois ele conduziu-se de forma “execrável, repugnante, reprovável”. Deixem o nome dele na rua, apenas por baixo onde o apresentam como navegador ponham escravizador, como nas estátuas de opressores ou teóricos da opressão deviam acrescentar aos elogios uma nova placa com referência curricular mais completa. A História comum da humanidade ganha com essas novas informações públicas.

Esse é o texto blogado ilustrado abaixo do título com foto de Nuadibu e no fim mapa mal amanhado dos trajetos por terra e mar de Arguim a Lagos. João Baptista abriu o blog para conferir e minutos depois estava em frente ao antigo forte de São João Baptista de Ajudá, Museu Histórico de Ouidah, Benim.

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Jonuel  (de José Manuel ) Gonçalves economista angolano, atualmente no Brasil concluindo pesquisa pós doutoral sobre  ascensão e crise de economias emergentes dos dois lados do Atlântico Sul. Vários livros publicados com edições em Angola, Brasil e Portugal, ficção e não ficção. Em Portugal, não ficção: “Franco Atiradores”, “E se Angola tivesse proclamado a independência em 1959?”; romance: “A Ilha de Martim Vaz.
Trabalha na segunda fase do projeto sobre Economias do Atlântico Sul, com base em três institutos de investigação  de Angola, Brasil e Portugal), o seu livro mais recente: “África no mundo livre das imposturas identitárias”, edição Guerra e Paz, 2020.