IVERMECTINA – A DROGA ASSASSINADA- por Francis Khan

A DROGA ASSASSINADA

A ivermectina na narrativa da Folha de São Paulo

  1. Introdução

O uso da ivermectina no tratamento e prevenção da Covid-19 é um dos capítulos mais controversos na história da pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2. Adotada em alguns países, inclusive na Europa, e rejeitada por muitos outros, prescrita por vários médicos e proscrita por inúmeros outros, objeto de dezenas de pesquisas clínicas consideradas inconclusivas por importantes órgãos públicos de saúde, a ivermectina tem provocado debates acirrados e ações judiciais em várias partes do mundo. O objetivo deste artigo não é oferecer uma resposta a essa polêmica. Tal resposta só pode ser fornecida pela ciência, ou seja, por meio da realização de estudos clínicos, de preferência randomizados e duplo-cegos (ensaios clínicos em dupla ocultação), e de meta-análises realizadas a partir desses e de outros estudos. O propósito deste artigo é outro: (a) analisar a narrativa a respeito do medicamento ivermectina em algumas reportagens publicadas em um importante veículo de imprensa brasileiro, o jornal Folha de São Paulo[i] e (b) verificar, a partir dessa análise, se a referida narrativa fundamenta-se no estado da arte da discussão científica.

Espero que este pequeno estudo abra as portas para pesquisas de maior fôlego que investiguem um universo de discurso mais amplo: por exemplo, todas as reportagens da Folha de São Paulo, ou mesmo todas as reportagens dos principais meios de comunicação brasileiros sobre o assunto. É possível que eu tenha reunido, durante pouco mais de um ano, material suficiente para escrever um livro; mas aquilo que quero demonstrar cabe nos limites de um artigo breve e, por isso, apenas as fontes mais essenciais serão citadas. Como é possível que nem todos estejam a par das polêmicas causadas pelo uso da ivermectina na pandemia causada pelo Sars-Cov-2, será apropriado iniciar este estudo fazendo uma rápida retrospectiva sobre o assunto.

  1. O medicamento

A ivermectina é um medicamento usado contra várias espécies de parasitas e vermes.[ii] A droga está presente nas duas listas de medicamentos essenciais (para adultos e para crianças) da OMS. A ivermectina tem sido usada em animais (bovinos, equinos, suínos, ovinos e caninos) a partir de 1981 e, desde 1987, por bilhões de pessoas, sobretudo nas regiões mais pobres do planeta.[iii] Por sua descoberta, que teve início com a cultura de uma bactéria descoberta no solo do Japão em 1975, o irlandês William C. Campbell e o japonês Satoshi Ōmura receberam o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 2015.[iv] De acordo com as palavras de Ōmura, a ivermectina é uma “droga-prodígio” que beneficiou bilhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo nos países mais pobres.[v] Mais recentemente, o medicamento tem sido pesquisado por suas supostas propriedades anti-inflamatórias, antivirais e anti-câncer.[vi]

  1. A polêmica durante o ano de 2020

No célebre estudo publicado em 3 de abril de 2020, pesquisadores australianos revelaram que a ivermectina inibe a replicação do vírus SARS-Cov-2 in vitro.[vii] Esse estudo aponta para a necessidade de realização de pesquisas clínicas in vivo para verificar se, e em que dosagem, a droga pode ser usada no tratamento da Covid-19.[viii]

A polêmica em torno da ivermectina teve início quando alguns médicos, sem esperar pela conclusão dos estudos clínicos sobre a eficácia da ivermectina no tratamento e prevenção da Covid-19, que tiveram início em 2020, passaram a recomendar seu uso imediato contra a doença. Algumas lideranças políticas de países pobres, sobretudo na América do Sul, começaram a distribuir doses do remédio à população. No Brasil, no decorrer de 2020, houve um aumento significativo do volume de vendas da ivermectina, indicando que a população estava, muito provavelmente, usando o medicamento em função da pandemia e sem prescrição médica.[ix]

No Brasil, esse estado de coisas gerou uma reação de parte da comunidade científica, dos profissionais de saúde e da imprensa, que já estavam, àquela altura, questionando a eficácia de outros medicamentos que então integravam o protocolo de tratamento padrão para a COVID-19: a azitromicina (antibiótico usado para prevenir infecções oportunistas) e, sobretudo, a hidroxicloroquina. Essa reação era, basicamente, uma defesa da ciência e do método científico: nenhum tratamento poderia ser indicado para o tratamento da Covid-19 sem que estudos clínicos comprovassem sua eficácia e segurança, e o uso de um remédio que não atendesse a esses critérios seria antiético.[x] Os defensores do vermífugo, por sua vez, alegavam que, ao contrário da cloroquina, a ivermectina tinha um perfil de segurança que justificaria sua aplicação emergencial, e que seria antiético negar aos doentes, durante uma grave emergência de saúde pública, a possibilidade de receber um tratamento que apresentasse alguma chance de êxito.

Como podemos ver, a polêmica de 2020 sobre o uso da ivermectina contra a COVID-19 repousa sobre um problema de difícil resolução: a ocorrência de uma pandemia permite alterar os critérios éticos que norteiam a prática médica? Esta deve sempre caracterizar-se pela defesa intransigente dos mais altos níveis de rigor científico, ou deve permitir, ao menos em casos excepcionais, que evidências menos rigorosas, produzidas sem esse grau máximo de confiabilidade, sejam admitidas na proposição de um tratamento? Independentemente da revisão pela qual passa, na atualidade, a tradicional pirâmide de evidências,[xi] não parece haver uma solução simples ou definitiva para esse dilema, e tudo indica que cada caso teria de ser avaliado em sua singularidade. No caso da Covid-19, foi apenas no fim de 2020 que os resultados dos ensaios clínicos que permitiriam avaliar a eficácia ou a ineficácia da ivermectina começaram a acumular-se.

  1. A polêmica durante o ano de 2021

Esperava-se que a progressiva acumulação de resultados das pesquisas clínicas realizadas no ano anterior conduzisse, em 2021, ao fim da controvérsia sobre a ivermectina. Ou bem o medicamento era eficaz, ao menos em alguma medida, ou bem era ineficaz. O que se viu, no entanto, foi o prolongamento do impasse a respeito da eficácia da droga.

Em 8 de dezembro de 2020, o Dr. Pierre Kory depôs a favor do uso da ivermectina perante o Senado americano.[xii] Kory é um membro muito atuante do Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC), entidade que defende o uso de um protocolo contra a Covid-19 que inclui o uso de ivermectina.[xiii] Esse não foi o primeiro testemunho de Kory no Senado americano; em 6 de maio de 2020 ele já havia prestado, diante da mesma comissão de segurança interna, um depoimento a favor do uso de corticosteróides nas fases moderada e grave (inflamatórias) da Covid-19.[xiv]

O depoimento de Pierre Kory a favor da ivermectina é importante por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, ele levou o maior instituto de pesquisa biomédica do mundo, o National Institutes of Health (NIH), a revisar sua posição a respeito da ivermectina. Anteriormente contrário ao uso do medicamento, o NIH assumiu, em 11 de fevereiro de 2021, uma posição neutra — nem contra, nem a favor do uso da ivermectina para o tratamento da Covid-19:

“There are insufficient data for the COVID-19 Treatment Guidelines Panel (the Panel) to recommend either for or against the use of ivermectin for the treatment of COVID-19. Results from adequately powered, well-designed, and well-conducted clinical trials are needed to provide more specific, evidence-based guidance on the role of ivermectin in the treatment of COVID-19.”[xv]

Em segundo lugar, o depoimento de Kory no Senado despertou o interesse da Dra. Theresa Lawrie,[xvi] diretora da “The Evidence-Based Medicine Consultancy”, empresa de consultoria especializada em meta-análises de estudos clínicos que teve a OMS entre seus clientes durante muitos anos.[xvii] Servindo-se do tempo livre de que dispunha entre o Natal e o ano-novo, Tess Lawrie fez uma meta-análise dos estudos clínicos sobre a ivermectina e a Covid-19 publicados até a data, e concluiu pela eficácia do remédio.[xviii] Cientista rigorosa, Lawrie entrou em contato com os autores das pesquisas quando era preciso esclarecer dúvidas em relação às metodologias e aos dados apresentados. Sua meta-análise, embora tenha passado pelo processo usual de aprovação por pares, acabou sendo rejeitada por decisão do editor da revista a que foi submetida.

Ao mesmo tempo, ocorriam importantes manifestações contrárias ao uso da droga no tratamento da Covid-19. Uma delas foi feita por parte da empresa farmacêutica Merck, dona da patente da ivermectina até 1996 e que notabilizou-se, nos anos 80, por uma campanha de distribuição gratuita do medicamento na África, no Oriente Médio e nas Américas Central e do Sul.[xix] Num comunicado publicado em seu website em 4 de fevereiro, a Merck declarou que havia, na maioria dos estudos, uma preocupante ausência de dados de segurança, e que não havia base científica ou evidência de eficácia para o uso da droga contra a Covid-19.[xx]

A seguir, importantes agências de saúde também se manifestaram. Em 22 de março, a European Medicines Agency (EMA) declarou:

“Most studies EMA reviewed were small and had additional limitations, including different dosing regimens and use of concomitant medications. EMA therefore concluded that the currently available evidence is not sufficient to support the use of ivermectin in COVID-19 outside clinical trials.”[xxi]

Poucos dias depois, a Organização Mundial de Saúde (OMS) se juntaria à EMA e à Merck.[xxii]

The current evidence on the use of ivermectin to treat COVID-19 patients is inconclusive. Until more data is available, WHO recommends that the drug only be used within clinical trials.

The group reviewed pooled data from 16 randomized controlled trials (total enrolled 2407), including both inpatients and outpatients with COVID-19. They determined that the evidence on whether ivermectin reduces mortality, need for mechanical ventilation, need for hospital admission and time to clinical improvement in COVID-19 patients is of “very low certainty,” due to the small sizes and methodological limitations of available trial data, including small number of events.

The panel did not look at the use of ivermectin to prevent COVID-19, which is outside of scope of the current guidelines.[xxiii]

As conclusões do National Institutes of Health (NIH), da European Medicines Agency (EMA) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) poderiam ter sido escritas pela mesma pessoa, pois seu teor é idêntico. Os dados são insuficientes; sua confiabilidade é pequena; as evidências são inconclusivas. Todos os pareceres apontam para a necessidade de realização de novas pesquisas clínicas.

Tentarei resumir, com o máximo de objetividade, o estado atual da controvérsia. As dezenas de estudos existentes, uma vez submetidos a meta-análises rigorosas, convergem para o mesmo ponto: a eficácia da ivermectina na profilaxia e tratamento da Covid-19. No entanto, as agências de saúde questionam a qualidade dos estudos existentes; e se os estudos não são válidos, ou não são suficientemente válidos, tampouco seriam válidas as meta-análises realizadas a partir deles.

  1. As reportagens da Folha de São Paulo

Teria a Folha de São Paulo uma certa “má-vontade” em relação ao uso da ivermectina contra a Covid-19? O mero título de uma reportagem publicada em 20 de maio de 2020 basta para confirmar o viés do jornal: “Bolsonaristas criam ‘corrente do bem’ e se medicam com cloroquina, azitromicina e antipulgas”.[xxiv]

“Antipulgas”? Porque um jornal de grande circulação, ao mesmo tempo em que chama os outros medicamentos pelos seus nomes corretos, rotularia desse modo um dos remédios propostos para amenizar a maior crise de saúde pública deste século? O rótulo não é apenas falso (a ivermectina jamais foi um antipulgas); ele é depreciativo e até mesmo amedrontador, pois retrata o remédio como se fora um inseticida.

A intenção do jornal é claramente perceptível: ridicularizar, por meio da droga, o “bolsonarismo”. Obviamente, empresas jornalísticas e seus operadores têm o direito de assumir posições políticas, e a Folha tem todo o direito de ridicularizar o bolsonarismo. Resta saber se ela tem o direito de fazê-lo ridicularizando um medicamento barato e livre de patentes cuja eficácia ainda estava sendo pesquisada.

São dois os procedimentos principais pelos quais a Folha (e a imprensa brasileira em geral) tentaram atingir a reputação da ivermectina durante a pandemia. O primeiro deles consistia em jamais mencioná-la sem mencionar também a cloroquina ou a hidroxicloroquina. A intenção desse truque simples era produzir e reforçar nos leitores uma associação indelével entre a ivermectina e outras drogas que já haviam “caído em desgraça”. O segundo procedimento consistia em afirmar que a ineficácia da ivermectina já teria sido comprovada.

Veremos que, nos dois trechos de reportagens que serão analisados a seguir, ambos os procedimentos são utilizados. De acordo com a frase inicial que apresenta uma entrevista publicada em 3 de abril de 2021 pela Folha de São Paulo,

“O cirurgião Sidney Klajner, 53, presidente da Sociedade Israelita Albert Einstein, diz lamentar o fato de colegas médicos insistirem em tratamentos precoce contra a Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina, comprovadamente sem eficácia.”[xxv]

No texto da entrevista, entretanto, não há nenhuma ocorrência da palavra “ivermectina”; e quando o médico aborda o tema do “tratamento precoce”, ele fala em medicamentos “sem comprovação nenhuma”. Ora, dizer que a eficácia de um remédio “não está comprovada” é uma coisa; porém dizer que um remédio é “comprovadamente sem eficácia” é coisa completamente diferente. As agências de saúde (NIH, EMA, OMS) disseram que a eficácia da ivermectina contra a Covid-19 (ainda) não foi provada; mas elas jamais disseram que sua ineficácia foi comprovada.

Posso estar enganado, mas a impressão que tenho é a de que a reportagem pôs na boca de um médico renomado palavras que ele nunca disse e jamais diria. Para que fique bem claro: se a ivermectina fosse “comprovadamente sem eficácia”, as agências de saúde mencionadas jamais autorizariam seu uso em novos testes clínicos. Que não reste nenhuma dúvida: para que um médico se abstenha de receitar determinado remédio, basta que este seja “sem eficácia comprovada”. Comprovação de ineficácia é outra coisa.

Provocar o impacto desejado já na primeira frase de uma matéria parece estar entre as normas de redação da Folha de São Paulo. Suponho que existam estudos mostrando que a leitura de uma notícia é, muitas vezes, abandonada logo após as primeiras frases. Seja como for, a frase que abre a reportagem publicada em 23 de novembro de 2020 não poderia ser mais taxativa: de acordo com ela, a eficácia da ivermectina já foi desmentida.

“O Brasil é o único país do mundo onde continuam a circular com frequência notícias falsas sobre cloroquina, ivermectina e azitromicina como curas para a Covid-19, que já foram desmentidas por diversos estudos científicos.”[xxvi]

Que estudo ou estudos seriam esses? Como o trecho citado remete, na frase “desmentidas por diversos estudos científicos”, a uma referência em hipertexto, é de se esperar que a resposta esteja nessa referência.

Esta, entretanto, não poderia ser mais decepcionante: “Hidroxicloroquina não tem eficácia, diz maior estudo brasileiro sobre a droga”.[xxvii] Não há, na reportagem referenciada, nenhuma menção à ivermectina, nenhuma ocorrência da palavra. E, pensando bem, nem poderia haver: se em 31 de março de 2021 a OMS declarou que a ivermectina pode ser usada em novos estudos clínicos, não poderia haver, em 23 de novembro de 2020, nenhum “estudo científico” que teria “desmentido” sua eficácia, e muito menos “diversos estudos científicos”. Trata-se, no máximo, de uma espécie de wishful thinking ao revés.

São pelo menos dois os propósitos de uma referência acadêmica ou jornalística quando esta cita uma fonte. Em primeiro lugar, a citação dá ao leitor a oportunidade de consultar e verificar a fonte da informação por sua própria conta; em segundo lugar, ela fornece ao texto o peso de uma autoridade que, sem a citação, ele não possuiria. Por isso, fazer uma nota de pé de página ou, num documento eletrônico, apresentar um link (atalho, caminho, liame, ligame, ligação) em hipertexto jamais é um procedimento inocente. Ao saber da citação sempre se acrescenta seu poder de autoridade. Quando o autor de um trabalho acadêmico ampara uma afirmação qualquer numa citação inexistente, ou numa citação que não possui relação com o tema, ele está agindo de forma fraudulenta.

Talvez ainda mais grave, porém, seja a apresentação das afirmações a respeito da suposta eficácia da ivermectina contra a Covid-19 como “fake news”: como se a “ausência de comprovação” significasse automaticamente “comprovação de ineficácia”, como se “incerteza” significasse “falsidade”.  O discurso teria de ser muito mais nuançado, pois, em casos complexos como este, não se aplica o princípio do terceiro excluído (segundo o qual “se não é verdadeiro, é falso”). A rigor, de acordo com os dados disponíveis hoje, afirmar que a ivermectina “funciona” pode não ser verdadeiro, mas afirmar que “não funciona” é inequivocamente falso. Essa é a posição oficial do NIH, da EMA e da OMS. Eles não recomendam o uso da ivermectina, mas ao menos reconhecem que os dados existentes justificam novos ensaios clínicos. É sob essa ótica que devemos analisar a mal redigida declaração da Associação Médica Brasileira (AMB), publicada em 23 de março de 2021:

“Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida.”[xxviii]

O subtítulo da matéria publicada no portal das organizações Globo esclarece que

“O posicionamento é oposto a um anterior, de julho do ano passado, quando a entidade defendeu a ‘autonomia do médico’ ao receitar os medicamentos, que já tiveram sua ineficácia comprovada contra a Covid-19.”[xxix]

Percebe-se que, embora não exista nenhuma razão científica para a ivermectina estar nessa lista (junto a tantos companheiros de má fama), o cerco ao medicamento vai se fechando cada vez mais. Médicos de grande presença na mídia são mencionados em reportagens que clamam pela punição de profissionais que receitam remédios “sem embasamento científico”.[xxx]

Em resumo, ao fazer advertências contra os perigos da automedicação e lembrar que a eficácia da ivermectina ainda não havia sido comprovada, a imprensa brasileira cumpriu seu papel. Mas, ao assumir o lugar da ciência e proferir vereditos definitivos sobre a droga, o que a imprensa brasileira fez, e continua fazendo, é um trabalho de desinformação.

  1. Conclusão

A Folha de São Paulo não está sozinha na campanha de desinformação sobre a ivermectina. Se eu dei ênfase às reportagens da Folha, é porque reconheço que notícias publicadas no centenário veículo de comunicação possuem um peso maior do que notícias publicadas em jornais menores ou em revistas de divulgação científica de qualidade duvidosa. Há muitos outros exemplos de desinformação sobre a ivermectina, seja nas páginas da Folha, seja na imprensa brasileira em geral, mas a análise de mais material desse tipo, que deve ser sempre criteriosa, apenas cansaria o leitor (e a mim mesmo) sem trazer nada de substancialmente novo.

É difícil acreditar que a simples oposição política a um presidente, coisa que pode ser feita em tantas frentes e de tantas maneiras, seja razão suficiente para assassinar, em meio a uma pandemia, a reputação de uma droga. Também é preciso reconhecer que a imprensa brasileira não está sozinha nessa campanha contra a ivermectina; trata-se de um fenômeno mundial que abrange, aliás, a imprensa e as redes sociais.

Nada tenho contra a Folha ou contra a imprensa. Pelo contrário: sou jornalista e creio que a imprensa é um dos pilares de um regime democrático, o que exige um compromisso permanente com a verdade. Mas manter um compromisso com a verdade significa jamais fechar as portas ao debate. Estamos presenciando um estranho movimento de “checagem de fatos” que vai além da imprensa e se estende às gigantescas empresas de mídias sociais.[xxxi] A busca da verdade é louvável, e apenas ela explica o exercício de análise que fiz neste artigo; mas a busca da verdade implica reconhecer a importância do diálogo e do debate envolvendo narrativas que se contradizem. Sem esse diálogo e esse debate, haverá a imposição de verdades (literalmente) inquestionáveis e a censura de todos os argumentos discordantes. É o que acontece quando redes sociais e veículos de comunicação passam a atuar como autênticos Ministérios da Verdade e se arrogam o direito de rotular de “fake news” todo discurso que não reitere o discurso “oficial”.[xxxii]

Mais de um ano depois, a controvérsia sobre a ivermectina ainda não terminou. De acordo com as mais importantes agências de saúde, não sabemos (ainda) se a ivermectina é capaz de ao menos amenizar os efeitos da maior pandemia dos últimos 100 anos. Para os defensores da droga, a campanha contra o medicamento menospreza os Direitos Humanos, e seria antiético realizar novas pesquisas clínicas, pois a eficácia da ivermectina já teria sido comprovada. Com efeito, tudo depende da maneira pela qual os dados existentes são interpretados. Um estudo que a OMS considerou altamente confiável é precisamente o estudo mais questionado entre todos,[xxxiii] e as conclusões das agências de saúde já foram objeto de uma minuciosa refutação.[xxxiv]

Não haveria de ser eu, um simples jornalista de um país periférico, quem bateria o martelo sobre a questão. No entanto, e aqui me permito emitir uma simples opinião, parece bastante improvável que, com tamanha convergência de resultados entre os diversos estudos, a ivermectina seja completamente ineficaz.[xxxv]

Embora não sejam divulgados pela imprensa brasileira, os sinais têm sido positivos para os defensores da ivermectina. Ações judiciais contra hospitais americanos que se recusam a usar o medicamento têm obtido ganho de causa, e os pacientes que recebem o tratamento têm se recuperado. Mais de 20 países, 5 deles na Europa, estão usando o medicamento contra a Covid-19;[xxxvi] e a meta-análise do Dr. Pierre Kory, depois de ter sido unilateralmente rejeitada pelo editor de uma revista após a aprovação por pares (tal como aconteceu com o trabalho de Tess Lawrie), foi finalmente publicada no American Journal of Therapeutics.[xxxvii] Se o acúmulo de evidências acabar comprovando que a ivermectina[xxxviii], ao menos em alguma medida, funciona, seremos forçados a nos perguntar: por que a OMS simplesmente ignorou os estudos sobre profilaxia, quando sabemos que milhões de pessoas irão infectar-se por ainda não terem acesso à vacinação? Por que houve, e continua havendo, uma maciça campanha de desinformação contra a ivermectina? Quem teria interesse em depreciá-la, associando-a permanentemente à cloroquina no imaginário popular? Quem haveria de ter interesse em assassinar a reputação de uma droga livre de patentes durante a vigência de uma pandemia que já matou milhões de pessoas?

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[i] A “Folha de São Paulo”, que completou 100 anos de existência em 19 de fevereiro de 2021, disputa com “O Globo”, do Rio de Janeiro, o título de maior e mais importante jornal do Brasil.
[ii] De acordo com a bula da Revectina (Abbott), a droga é indicada para o tratamento de Estrongiloidíase intestinal, Oncocercose (cegueira dos rios), Filariose (elefantíase), Ascaridíase (lombriga), Escabiose (sarna) e Pediculose (piolho). URL: https://dam.abbott.com/pt-br/documents/pdfs/nossas-bulas/r/BU-16-Revectina-bula-profissional-final.pdf
[iii] Jeffrey Sturchio. The Case of Ivermectin: Lessons and Implications for Improving Access to Care and Treatment in Developing Countries. URL: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1705916/
[iv] Também concedido à chinesa Tu Youyou, que descobriu a artemisinina, uma droga contra a malária
[v] “Ivermectin, along with its parent compound, avermectin, are both extremely broad-spectrum antiparasitic agents. Ivermectin is among those few compounds, such as penicillin and aspirin, delineated as ‘wonder drugs’, all, incidentally, originating from natural products. It is also predominantly a drug for the poor… Ivermectin is increasingly being viewed as even more of a ‘wonder drug’ in human health, as it has also been improving the nutrition, general health and wellbeing of billions of people worldwide.” ŌMURA, Satoshi. A Splendid Gift from the Earth: The Origins and Impact of the Avermectins. Nobel Lecture, December 7, 2015, p. 251. URL: https://www.nobelprize.org/uploads/2018/06/omura-lecture.pdf
[vi] Ver, por exemplo: Fatemeh Heidary & Reza Gharebaghi. Ivermectin: a systematic review from antiviral effects to COVID-19 complementary regimen. URL: https://www.nature.com/articles/s41429-020-0336-z. Portmann-Baracco et al. Antiviral and anti-inflammatory properties of ivermectin and its potential use in Covid-19. URL: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7578741/. TANG, Mingyang et al. Ivermectin, a potential anticancer drug derived from an antiparasitic drug.
URL: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7505114/.
[vii] CALY, Leon et al. The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro. PubMed/NIH, 2020. URL: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32251768/
[viii] CALY, Leon et al., op. cit. “Ivermectin has an established safety profile for human use,and is FDA-approved for a number of parasitic infections. Importantly, recent reviews and meta-analysis indicate that high dose ivermectin has comparable safety as the standard low-dose treatment, although there is not enough evidence to make conclusions about the safety profile in pregnancy. (…) Altogether the current report, combined with a known-safety profile, demonstrates that ivermectin is worthy of further consideration as a possible SARS-CoV-2 antiviral.”
[ix] Vendas de ivermectina em junho de 2020 superam as de todo 2019 (Folha de São Paulo, 31 de julho de 2020). URL: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/07/vendas-de-ivermectina-em-junho-de-2020-superam-as-de-todo-2019.shtml
[x] D’ÁVILA, André et al. Pandemônio Durante a Pandemia: Qual o Papel dos Profissionais da Saúde e a Ciência? Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Volume 114, Nº 5, Maio 2020.
URL: http://publicacoes.cardiol.br/portal/abc/portugues/2020/v11405/pdf/edicao/10/
[xi] MURAD, Hassan et al. New evidence pyramid. BMJ Evidence-Based Medicine, August 2016, volume 21, number 4, p. 125. URL: https://ebm.bmj.com/content/21/4/125.info
[xii] Testimony of Pierre Kory, MD. Homeland Security Committee Meeting: Focus on Early Treatment of COVID-19 (December 8, 2020). URL: https://www.hsgac.senate.gov/download/kory12-08-2020
[xiii] https://covid19criticalcare.com/about/the-flccc-alliance-story/
[xiv] Posteriormente, o uso de corticosteroides terminaria sendo incorporado ao protocolo padrão de tratamento nas fases mais graves de Covid-19. URL: https://www.hsgac.senate.gov/imo/media/doc/Testimony-Kory-2020-05-06-REVISED.pdf
[xv] National Institutes of Health. COVID-19 Treatment Guidelines (Last Updated: February 11, 2021). URL: https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/antiviral-therapy/ivermectin/
[xvi] https://www.researchgate.net/profile/Theresa-Lawrie
[xvii] https://www.e-bmc.co.uk/
[xviii] Em 19 de janeiro foi publicada em preprint outra meta-análise importante: HILL, Andrew et al. Meta-analysis of randomized trials of ivermectin to treat SARS-CoV-2 infection. URL: https://www.researchsquare.com/article/rs-148845/v1
[xix] Merck Offers Free Distribution of New River Blindness Drug. The New York Times, Oct. 22, 1987. URL: https://www.nytimes.com/1987/10/22/world/merck-offers-free-distribution-of-new-river-blindness-drug.html
Ver também: Mass treatment with ivermectin: an underutilized public health strategy. Bulletin of the World Health Organization, Volume 82, Number 8, August 2004, 559-636.
URL: https://www.who.int/bulletin/volumes/82/8/editorial30804html/en/
[xx] Merck Statement on Ivermectin use During the COVID-19 Pandemic.  URL:
https://www.merck.com/news/merck-statement-on-ivermectin-use-during-the-covid-19-pandemic/
[xxi] European Medicines Agency. EMA advises against use of ivermectin for the prevention or treatment of COVID-19 outside randomised clinical trials. URL: https://www.ema.europa.eu/en/news/ema-advises-against-use-ivermectin-prevention-treatment-covid-19-outside-randomised-clinical-trials
[xxii] WHO joins Europe, Merck in recommending against ivermectin for COVID-19. Reuters, March 31, 2021. URL: https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-ivermectin-idINKBN2BN2HH
[xxiii] WHO advises that ivermectin only be used to treat COVID-19 within clinical trials. WHO, 31 March 2021. URL: https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/who-advises-that-ivermectin-only-be-used-to-treat-covid-19-within-clinical-trials
[xxiv] Bolsonaristas criam ‘corrente do bem’ e se medicam com cloroquina, azitromicina e antipulgas. Folha de São Paulo, 20 de maio de 2020. URL: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/bolsonaristas-criam-corrente-do-bem-e-se-medicam-com-cloroquina-azitromicina-e-antipulgas.shtml
[xxv] Discurso do CFM é de quem não usa a ciência como norteador, diz presidente do Einstein. Folha de São Paulo, 3 de abril de 2021. Grifo meu. URL: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/04/discurso-do-cfm-e-de-quem-nao-usa-a-ciencia-como-norteador-diz-presidente-do-einstein.shtml
[xxvi] Brasil é único país onde fake news sobre cloroquina ainda circulam com frequência. Folha de São Paulo, 23 de novembro de 2021. URL: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/11/brasil-e-unico-pais-onde-fake-news-sobre-cloroquina-ainda-circulam-com-frequencia.shtml
[xxvii] Hidroxicloroquina não tem eficácia, diz maior estudo brasileiro sobre a droga (Folha de São Paulo, 2020.07.23). URL: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/07/hidroxicloroquina-nao-tem-eficacia-diz-maior-estudo-brasileiro-sobre-a-droga.shtml
[xxviii] Associação Médica Brasileira diz que uso de cloroquina e outros remédios sem eficácia contra Covid-19 deve ser banido. AMB, 23 de março de 2021. Grifos meus. URL: https://amb.org.br/noticias/associacao-medica-brasileira-diz-que-uso-de-cloroquina-e-outros-remedios-sem-eficacia-contra-covid-19-deve-ser-banido/
[xxix] Associação Médica Brasileira diz que uso de cloroquina e outros remédios sem eficácia contra Covid-19 deve ser banido. G1 (O Globo), 23 de março de 2021. Grifo meu. URL:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/03/23/amb-diz-que-uso-de-cloroquina-e-outros-remedios-sem-eficacia-contra-covid-19-deve-ser-banido.ghtml
[xxx] Médicos criticam inação de conselhos por não coibir colegas que defendem terapias sem evidência. Folha de São Paulo, 24 de dezembro de 2020. URL: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/medicos-criticam-inacao-de-conselhos-por-nao-coibir-colegas-que-defendem-terapias-sem-evidencia.shtml
[xxxi] YouTube Cancels the U.S. Senate. The Wall Street Journal, Feb. 2, 2021.
URL: https://www.wsj.com/articles/youtube-cancels-the-u-s-senate-11612288061
[xxxii] No dia 7 de maio de 2021, outro jornal paulista fez uma “checagem de fatos” com críticas genéricas a um artigo escrito por quatro cientistas japoneses (um deles Satoshi Ōmura, vencedor do Nobel) e publicado no The Japanese Journal of Antibiotics: YAGISAWA, Morimasa et al. Global trends in clinical studies of ivermectin in COVID-19. URL: http://jja-contents.wdc-jp.com/pdf/JJA74/74-1-open/74-1_44-95.pdf
[xxxiii] SCHEIM, David et al. Protocol violations in López-Medina et al.: 38 switched ivermectin (IVM) and placebo doses, failure of blinding, widespread IVM sales OTC in Cali, and nearly identical AEs for the IVM and control groups. URL: https://osf.io/u7ewz/
[xxxiv] FLCCC Alliance Response to All National and International Health Agency Recommendations Against Ivermectin in COVID-19. April 03, 2021. URL: https://covid19criticalcare.com/videos-and-press/flccc-releases/flccc-alliance-response-to-all-national-and-international-health-agency-recommendations-against-ivermectin-in-covid-19/
[xxxv] A meu ver, mesmo que, por hipótese, sua eficácia se limitasse a evitar casos de parosmia, seu uso já teria de ser considerado.
[xxxvi] Ivermectin for Covid-19: a cheap drug with a remarkable effect. Pharmacy Magazine, 22 Mar 2021.
URL: https://www.pharmacymagazine.co.uk/ivermectin-for-covid-19-a-cheap-drug-with-a-remarkable-effect
[xxxvii] KORY, Pierre et al. Review of the Emerging Evidence Demonstrating the Efficacy of Ivermectin in the Prophylaxis and Treatment of COVID-19. American Journal of Therapeutics: May/June 2021 – Volume 28 – Issue 3 – p e299-e318. URL:
https://journals.lww.com/americantherapeutics/Fulltext/2021/06000/Review_of_the_Emerging_Evidence_Demonstrating_the.4.aspx
[xxxviii] Another New York State Supreme Court Justice Ivermectin Order Helping 81-Year-Old Farmer. TrialSiteNews, April 10, 2021. URL: https://trialsitenews.com/another-new-york-state-supreme-court-justice-ivermectin-order-helping-81-year-old-farmer/

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Francis Khan. Nascido no Rio, mas radicado em São Paulo há 10 anos, Francis Khan é jornalista.