CONTOS CURTOS DE Olinda Gil

Foto de Paulo Burnay

A arma debaixo da almofada.

Detestava armas. Ela, que fora ativista contra o armamento via-se agora obrigada a pegar numa arma. Toda a gente deixara de ser o que era. A fome obrigara-a a deixar de ser vegetariana e a matar animais para comer.

A primeira coisa que fazia quando chegava ao esconderijo era largar a arma. Sabia que não o devia fazer, que toda a gente dormia com uma arma debaixo da almofada. Escondia-se ali havia vinte anos. O excesso de confiança e o horror às armas levavam-na a larga-las mal se sentia à vontade.

Foi por isso que morreu. Não tinha a arma perto de si para se defender quando entraram no esconderijo.

Fantasma

Era uma mulher jovem, a rondar os trinta anos de idade. Magra e pequena, parecia escondida naquele dia de chuva e frio. Trazia no regaço policiais de capas gastas. Ela poderia ser uma das suas personagens, já recriada nalgum filme antigo. Aliás, ela fazia-me lembrar alguém que já tinha visto num filme, mas era incapaz de precisar em qual. Uma mulher assim simples não é costume entrar na ourivesaria para comprar uma das joias mais caras. Mas a verdade é que ela entrou pela loja dentro, escolheu um anel de ouro e jade, grande demais para as suas mãos pequenas e finas, e sem qualquer hesitação decidiu-se por ele. Trazia uma pequena malinha de tecido, retalhos cozidos uns aos outros, possivelmente obra de artesanato, de onde tirou um molho de notas com que pagou o anel. Passei as notas pela máquina para verificar se alguma era falsa, antes de lhe dar o troco. Tudo nela era tão inusual e despropositado que desconfiei.

Depois saíu porta fora, com o anel no dedo, debaixo daquela chuva. Não hesitou, nem  olhou para trás. Seguiu certeira. Não levava guarda-chuva, e eu saí porta fora com um velho, que tinha para ali esquecido na loja, com o intuito de lho dar. Era uma mulher demasiado frágil para que andasse pelas ruas à deriva. Mas quando me abeirei à porta não havia sinais dela, nem à direita, nem à esquerda. Tinha-se esfumado. Voltei atrás: o anel faltava no expositor e o dinheiro estava em caixa. Não, não tinha sido um sonho.

As sucateiras

Pareciam tiradas de um filme americano, categoria B. Nem de propósito, uma alcoólica de meia idade viajava com a sua filha adolescente num camião adaptado em caravana, como costumavam fazer certos alemães. Ganhavam a vida a negociar sucata, mas faziam isso com um certo brio religioso. Acreditavam que, livrando as pessoas da acumulação, lhes prestavam um serviço espiritual.

Amigas

Saíu furibunda de casa por causa de toda a situação que acabara de se confirmar. Perante o boato insistente de que o marido tinha uma amante, acabou por o seguir e por confirmar. Ele, quando apanhado, pediu mil desculpas, chorou, mostrou-se fraco. Tinha sido incapaz de resistir à sedutora.

Que mulher impertinente! Ia agora mesmo, depois da conversa séria com o marido, tirar-lhe explicações. Como fora ela capaz de o seduzir? Não tinha vergonha, não tinha consciência? Logo ele, um homem tão trabalhador, amigo do amigo, bom pai, com a responsabilidade de dois filhos por criar. Que desavergonhada!

Quando entrou na casa dela sentiu-se desiludida. Ela nem era bonita nem era asseada. Só podia ter sido artes de feitiçaria que fizesse ao homem. Ia começar aos impropérios quando a outra lhe dirigiu palavra:

– Desculpa. Não queria dar cabo da tua vida. Mas talvez tenha dado é cabo da minha. Deixei-me levar na conversa, nas promessas de amor. Já percebi que era tudo mentira, do modo como ele saíu daqui com o rabo entre as pernas quando foi descoberto. Ele nem sequer queria amor. Só queria o meu corpo. O meu corpo… Foi o meu corpo que não respeitei. Perdi oportunidades por causa desta ilusão. Poderia estar a viver noutro lugar, com uma vida melhor, mas fiquei aqui. Foi a minha vida que eu estraguei.

Não foi capaz de lhe dizer nada, de discutir…

– Eu vou embora. Tenho vergonha agora, que toda a gente sabe. Vou procurar outro lugar, outras oportunidades. Talvez a vida seja simpática comigo, e eu encontre um emprego melhor.

– Não, não vás! – Nem sabia como lhe tinham surgido aquelas palavras, mas refletiam com sinceridade o que estava a sentir no momento, perante a mulher e a sua conversa. – Dê-me o seu currículo. Sei de um sítio onde precisam de uma pessoa.

Como ficou a situação de qualquer destas mulheres com este homem pouco importa. Interessa é que ambas foram malditas na sua comunidade por se terem tornado amigas. Mas para elas isso pouco importava.

Carinho comprado

A noite depois do calor, do suor. O cansaço persiste, apesar de lavado pelo duche. É um cansaço em que os braços pendem inúteis, quando antes vigorava a força do trabalho. Marrafa ao meio, after shave do supermercado, o fio de outro com o Cristo que a mãe lhe ofereceu, e que beija. Não sabe rezar, nem gosta de missas, mas faz promessas vãs que nunca cumpre. A noite é de descanso, o calor amainou, o trabalho terminou. Sentia a necessidade do momento de amor. Abriu a carteira. Tinha sido dia de receber.

Durante o dia gritou, lutou, mandou. Escolheu, decidiu, fez valer. Agora era a hora de ser mole. Como os seus braços cansados. Era hora de não escolher, não decidir, deixar-se ir. Sorriu, enquanto se derretia no carinho comprado. Ela beijava-o, acariciava-o, e a ele sabia-lhe a sonho e a tempo. O calor agora era outro, e ele deixou-se entregar.

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Olinda Pina Gil é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas. Tem também uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.
Iniciou a sua prática de escrita no “DnJovem”, suplemento do “Diário de Notícias”. Colaborou em diversas colectâneas e publicações, e foi 3º prémio do concurso literário “Lisboa à Letra” em 2004, na categoria de prosa.
Editou, a título independente, em 2013 “Contos Breves”, e, pela Coolbooks, chancela da Porto Editora, “Sudoeste” (2016, 2014 em ebook) e “Sobreviventes”(2017, 2015 em ebook).
Escreve no blog www.olindapgil.blogspot.com