A CULTURA COMO PRODUÇÃO DE SI E DO OUTRO (conclusão)- por Francisco Traverso Fuchs

Keith Jarrett – The Köln Concert (foto: Wolfgang Frankenstein)

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  1. Cultura como resolução de problemas

Embora possua aspectos sombrios, a cultura é muito mais do que uma fonte permanente de conflitos. Uma cultura pode ser descrita como uma maneira peculiar de propor e solucionar problemas. Desse ponto de vista, a riqueza da chamada diversidade cultural nada mais seria do que a expressão da variedade de soluções propostas pelas diversas culturas. Por exemplo, diferentes estratégias de caça e de coleta e, posteriormente, diferentes técnicas de plantio e de pastoreio fornecem soluções distintas ao problema da alimentação; técnicas de combate propõem soluções para o problema da guerra, e técnicas de cura propõem soluções para os problemas de saúde.

A diversidade de problemas a resolver conduz a uma crescente especialização. Sejam quais forem as técnicas de cura, elas serão praticadas, a depender da cultura, por um xamã, um sacerdote, um médico e assim por diante; mas será pouco provável que um guerreiro se ocupe dessas mesmas técnicas. Em muitas culturas primitivas, diferentes problemas são resolvidos exclusivamente por homens ou por mulheres: por exemplo, a caça e a coleta, a fabricação de armas e de utensílios domésticos.[1] A mitologia dos povos indo-europeus descreve a divisão dos membros dessas sociedades em três funções bem demarcadas: soberania, força e fecundidade.[2] Quanto mais complexo for um campo social, maior será a diversidade de problemas e a especialização de seus membros.

  1. Os problemas recorrentes

Um problema que jamais recebe uma solução definitiva é um problema recorrente. Todo ser vivo, sendo um sistema relativamente fechado, precisa repor periodicamente os nutrientes que possibilitam a manutenção de seu metabolismo; assim, a nutrição é, para o vivo, o problema recorrente por excelência. Outro problema recorrente comum a muitas espécies animais é a preparação dos filhotes para a vida adulta. Esse problema reveste-se de especial importância na espécie humana, cujos filhotes requerem um longuíssimo tempo de maturação e aprendizado.[3] Esse problema acabou dando origem a uma nova função especializada, a de professor. O problema do aprendizado é recorrente porque se repete a cada geração, mas também porque, tal como o problema da nutrição, sua resolução depende da continuidade de uma série de esforços intermitentes, geralmente diários, que podem se estender por vários anos e mesmo durante toda a vida.

O conceito de problema recorrente implica, portanto, um paradoxo. É incomum que alguém almoce duas vezes, ou estude novamente uma lição já aprendida. Cada solução particular dada a um problema recorrente faz parte do passado e nem sempre poderá ser revertida; ao mesmo tempo, nenhuma solução particular irá jamais abolir o problema. Sempre será possível mudar os hábitos alimentares, solucionando o problema da nutrição de maneira diversa. Uma lição já aprendida poderá ser examinada novamente a partir do surgimento de novos dados ou novas perspectivas. Assim, ainda que cada cultura descreva a si mesma como a cultura por excelência, ou seja, como aquela que forneceu as melhores soluções possíveis a todos os problemas do universo, estes estarão sempre abertos a novas estruturações e a novas soluções.

  1. Cultura e aprendizado

A competência cultural – a compreensão da língua e dos valores que caracterizam uma cultura – é adquirida durante a infância e a adolescência. Pode-se dizer, de maneira simplificada porém rigorosa, que é dando ouvidos aos outros que a criança aprende a falar e a comportar-se como um membro de sua cultura.

Ao aprender uma língua, entretanto, a criança faz muito mais do que assimilar os valores de uma determinada cultura: ela passa a pertencer à espécie humana.[4] A aquisição de uma linguagem produz as conexões cerebrais que permitirão o desenvolvimento cognitivo e a interação social.

Os limites do aprendizado e da interação social não estão predeterminados. A aquisição de linguagem e a socialização geralmente dão-se no seio de uma cultura particular, mas nada impede, ao menos em teoria, que os horizontes da  criança se ampliem com o passar do tempo. Além de escutar seus pais, irmãos, parentes, amigos, vizinhos, professores e assim por diante, ela poderá aprender a ler e a dar ouvidos a homens de outras épocas e de outras culturas. Ela poderá inclusive aprender outras línguas e aprofundar, tanto quanto possível, sua compreensão de outros modos de sentir e de pensar. Uma cultura não é, ou não é necessariamente, uma clausura.

  1. Cultura e aprendizado escolar

Nem os melhores professores do planeta conseguirão ensinar a um aluno aquilo que ele se recusa a aprender. Para aprender seja lá o que for, é preciso, em primeiro lugar, que o aluno dê ouvidos a seu professor. Se os alunos ficam a conversar durante a aula, levarão para casa, como “conteúdo”, apenas o que foi dito entre eles durante a conversa; e tudo permanecerá na mesma se, uma vez em casa, eles não derem ouvidos aos livros escolares.

Mas o aprendizado escolar não se confunde com uma simples transferência de “conteúdos”. Bons professores não apenas ensinam os “conteúdos” de suas respectivas disciplinas, mas ensinam, sobretudo, a estabelecer e resolver problemas. E o bom aluno não é aquele que apenas reproduz a resposta correta, tal qual está registrada no caderno do professor ou no livro escolar, mas aquele que consegue desenvolver, por sua própria conta, o raciocínio que conduz a ela. “É evidente no caso de uma operação matemática. Podemos acompanhar um cálculo sem refazê-lo por nossa conta? Compreendemos a solução de um problema a não ser resolvendo-o nós mesmos?”[5]

Dar ouvidos, portanto, é muito mais do que escutar o mestre e memorizar o que ele diz. Esse modelo pode funcionar com crianças pequenas que estão a decorar a tabuada ou as conjugações verbais. Mas é somente em níveis superiores de complexidade que o dar ouvidos revela todo o seu potencial: por exemplo, quando arqueólogos e paleontólogos atentam aos vestígios que a terra oculta, quando o bioquímico investiga as vias metabólicas, quando o historiador interroga suas fontes e assim por diante. Nesse sentido, toda ciência é um dar ouvidos e uma variante dessa atenção à vida de que falava Bergson.

  1. Cultura e esforço

A palavra latina cultura remete ao cultivo: em primeiro lugar, ao cultivo da terra, à agricultura; ao cultivo do espírito (cultura animi philosophia est), mas também do corpo; e, por fim, ao culto (veneração). Culto é o homem que cultiva, inclusive a si mesmo, mas também o homem que cultua (que cultiva uma religião) e o solo cultivado. Não há cultivo sem esforço. Plantas crescem muito bem por sua própria conta, e já sabiam fazê-lo muito antes que surgisse algo semelhante a um homem; mas cultivo não é coleta, e antes de trabalhar na colheita o agricultor terá de preparar e adubar a terra, plantar as sementes, irrigar a plantação e impedir que pragas a devorem. Do mesmo modo, o pensador que cultiva problemas, bem como o atleta que cultiva músculos, só realizam seus objetivos por meio de esforços sempre renovados.

Um aluno não pode estudar no lugar de outro, e um atleta não pode exercitar-se no lugar de outro. Nesse sentido, todo esforço é individual. Ao mesmo tempo, a cultura é uma continuidade de esforços individuais encadeados ou coordenados entre si. Há coordenação quando esforços individuais se coadunam e se prolongam em esforço coletivo; numa cirurgia, numa linha de produção fabril ou num time de futebol profissional, há esforço coordenado e trabalho de equipe. Mas mesmo onde não existe, a rigor, um esforço coordenado ou um trabalho em equipe, há um encadeamento de esforços. Só existem atletas e estudantes capazes de esforçar-se individualmente porque a geração anterior dedicou-se a educá-los, e a geração anterior só pôde educá-los porque também foi cuidada e educada, por sua vez, pela geração precedente.

  1. Cultura como produção de si e do outro

Raras são as circunstâncias nas quais é possível dizer que um homem produz diretamente o outro. Por exemplo, pode-se dizer que o cirurgião que realiza um transplante de coração produz, efetivamente, seu paciente. É verdade que, mesmo nesse caso, a cirurgia não será bem sucedida se o corpo do operado não reagir ativamente ao procedimento; mas o paciente jamais poderia operar a si mesmo, e é impossível atribuir-lhe mérito pelo sucesso do transplante. O coração doente, contudo, jamais teria sido substituído por um saudável se o médico que realizou a operação não houvesse, em primeiro lugar, produzido a si mesmo como cirurgião. Muitos anos de estudo e de treinamento foram necessários para que ele se tornasse capaz de entrar numa sala de operações e realizar uma cirurgia. Sem esse esforço de autoprodução, não existiria cirurgião, transplante ou cura. Se chegou a haver produção do outro, é porque houve, antes de mais nada, produção de si.

É essencial notar, entretanto, que a produção de si ocorrerá mesmo na ausência de esforço, ou seja, mesmo na ausência de uma atividade finalista, consciente e deliberada. Assim como o atleta se produz como atleta por meio de exercícios, o sedentário se produz como sedentário sem realizar nenhuma atividade em especial. O conceito de cultura como produção de si não exclui a atividade consciente e finalista, mas também não faz dela uma condição imprescindível ao processo de autoprodução. Querendo ou não, tentando ou não dirigir o processo de autoprodução, o homem não faz outra coisa senão produzir a si mesmo.

A produção do outro é igualmente inelutável. Minha autoprodução afeta a produção do outro. Se eu me formo em medicina, estarei produzindo para o outro um mundo no qual ele terá, ao menos em teoria, uma chance a mais de receber cuidados médicos. Se eu me produzo como explorador e derrubo uma floresta, estarei produzindo, para o outro, um mundo mais pobre em poesia e em recursos biológicos. Por outro lado, ao me produzir como alguém que produz um bem ou mercadoria, não estou produzindo uma simples “coisa”, um “objeto”; estou, na verdade, produzindo uma ação virtual sobre outro homem. Ao produzir a mim mesmo, e também ao produzir mercadorias ou serviços, estarei produzindo o mundo no qual o outro produz a si mesmo.

  1. O que é cultura?

Em seu livro sobre Nietzsche, Deleuze diz que a cultura é a “atividade genérica” do homem, ou seja, uma “atividade do homem sobre o homem”.[6] Deleuze refere-se a um tema que Nietzsche abordou em sua Genealogia da Moral: a atividade genérica da cultura como adestramento, e seu objetivo mais geral, a produção do homem capaz de prometer. A visão nietzscheana da cultura mescla antropologia (os rituais de iniciação como rituais de crueldade, isto é, adestramento violento das forças reativas) e um propósito elitista (a finalidade mais alta da cultura é a produção do artista e do filósofo).[7]

A fórmula ou definição que estou propondo é, sem dúvida, bastante semelhante a essa: cultura é a ação do homem sobre o homem para produzir o homem. As diferenças, no entanto, são bem grandes. Em primeiro lugar, a “ação do homem sobre o homem”, nessa concepção, é também (e principalmente) ação de si sobre si mesmo. Em segundo lugar, ela também inclui a ação virtual do homem sobre o homem. Em terceiro lugar, ela não constitui, a despeito das aparências, uma antropologia. A rigor, a cultura humana não passa de um caso particular dessa produção de si e do outro que define a cultura.

  1. O vivo como lance de dados

“Cada indivíduo histórico”, afirmou Gabriel Tarde, “foi um projeto de uma nova humanidade”.[8] Não se poderia igualmente dizer que cada ser vivo foi um projeto de uma nova espécie? Ao produzir a si mesmo, cada ser vivo (e não apenas cada ser humano) atualiza, à sua maneira, o problema recorrente da vida. É como se cada um dos seres vivos retomasse e relançasse, a partir de seu ponto de vista único, singularíssimo, toda a história da vida.

Do mesmo modo, a criação de um conceito filosófico sempre acaba retomando e relançando os dados da própria filosofia. É o que ocorre com o conceito filosófico de cultura, que acaba reencontrando e reeditando um dos mais antigos problemas filosóficos. Afinal, qual seria o sentido da vida senão a produção de si mesmo?

A potência e o caráter inelutável desse pensamento chamam a atenção. Aqueles que pensam a si mesmos como membros de uma determinada cultura não poderão ignorar que sua cultura só irá perpetuar-se caso seus membros se produzam como membros daquela cultura. Aqueles que acreditam num Deus como sentido último da existência não poderão ignorar que o homem religioso e obediente aos mandamentos divinos não nasce pronto, mas precisa, bem ao contrário, produzir-se como tal. E mesmo aqueles que não crêem que a vida possa ter um sentido qualquer continuarão, a despeito disso, produzindo a si mesmos até o fim de suas vidas. O conceito de cultura como produção de si e do outro é verdadeiramente universal e exprime um aspecto irredutível da própria realidade: “esta criação de si mesmo que parece ser o próprio objeto da vida humana”.[9] E não só da vida humana; até marcianos, caso existam, produzem a si mesmos.

  1. Cultura e ética

Pensar a cultura como produção de si e do outro equivale a penetrar, de chofre, na dimensão ética. Quando compreendo que sou responsável pela produção de mim mesmo; que a produção de mim mesmo afeta não apenas a mim, mas a todos os outros; que existe solidariedade entre as gerações atuais e passadas; que a autoprodução põe em pé de igualdade todos os homens e todos os seres vivos, ou seja, todas as diferenças, todas as vozes, todas as tonalidades da alma, não há mais como recuar da vida ética. Ao que tudo indica, o pensamento da cultura como produção de si e do outro constitui um caminho indireto, porém efetivo, para solucionar o difícil problema ético.

O conceito de bárbaro é correlato às concepções antropológica e elitista de cultura; e sua pertinência é, nos dias de hoje, amplamente contestada. Qualificar como “bárbaro” o culturalmente “outro” e o “ignorante” fere a sensibilidade moderna. Por outro lado, o conceito de cultura como produção de si e do outro traz consigo uma possibilidade de ultrapassar os conflitos entre culturas, ao indicar a existência de uma tarefa comum a todos os seres humanos de todas as culturas. Assim, não seria natural esperar que, nessa perspectiva, o conceito de barbárie se torne caduco e simplesmente desapareça?

Na verdade, é exatamente o contrário. Porque os dois conceitos são correlatos, uma renovação do conceito de cultura implica uma renovação do conceito de barbárie. Na concepção filosófica de cultura, no entanto, o bárbaro apenas deixa de ser o barbarófono, aquele que mal fala ou não fala a língua culta, o outro, o estrangeiro, o ignorante, e torna-se aquele que não ouve, aquele que não dá ouvidos.

NOTAS

[1] CLASTRES, Pierre. L’Arc et le Panier, IN La société contre l’État, op. cit., pp. 88-111.
[2] DUMÉZIL, Georges. Heur et malheur du guerrier. Paris, PUF, 1969, p. 12. Os códigos de cores das vestimentas, vigentes durante milênios e que, de um modo ou de outro, ainda perduram (le rouge et le noir, blue collars/white collars…), devem-se inteiramente a essas divisões sociais. “Segundo as tradições indo-iranianas, a sociedade organiza-se em três classes de atividade: sacerdotes, guerreiros, agricultores. Na Índia védica essas classes chamavam-se “cores”, varna. No Irã, elas têm o nome pistra, “ocupação”, cujo sentido etimológico também é “cor”. É preciso tomar a palavra em sua acepção literal: são, efetivamente, cores. É pela cor de suas roupas que, no Irã, as três classes se distinguiam — o branco para os sacerdotes, o vermelho para os guerreiros, o azul para os agricultores, em virtude de um simbolismo proveniente de antigas classificações conhecidas em muitas cosmologias, associando o exercício de uma atividade fundamental com uma determinada cor, que está ligada, por sua vez, a um ponto cardeal.” BENVENISTE, Émile. Op. cit., Vol. 1, p. 279.
[3] MORIN, Edgar. Le paradigme perdu: la nature humaine. Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 95.
[4] “Privé de culture, sapiens serait un débile mental, incapable de survivre sinon comme un primate de plus bas rang; il ne pourrait même pas reconstituer une société de complexité égale à celle des babouins e des chimpanzés.” MORIN, Edgar. Op. cit., p. 100.
[5] BERGSON, Henri. L’Energie Spirituelle, IN Oeuvres, Paris, PUF, 1984, p. 943/169. Joseph L. Mankiewicz, diretor e roteirista do filme All about Eve, ilustra brilhantemente esse ponto num diálogo entre Lloyd Richards, autor teatral, e Margo Channing, a atriz que trabalha em sua peça:
LLOYD: I shall never understand the weird process by which a body with a voice suddenly fancies itself as a mind! Just when exactly does an actress decide they’re her words she’s saying and her thoughts she’s expressing?
MARGO: Usually at the point when she’s got to rewrite and re-think them to keep the audience from leaving the theater!
[6] DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, PUF, 1983, p. 154.
[7] DELEUZE, Gilles. Op. Cit., p. 125.
[8] TARDE, Gabriel. Les Lois Sociales. Paris, Félix Alcan, 1898, p. 148.
[9] BERGSON, Henri. Op. Cit., p. 837/31.

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Francisco Traverso Fuchs descobriu que o tabaco não torna em fumaça as mágoas, e trocou-o pelo chimarrão. No entanto, devido aos muitos anos de tabagismo, sofre de lapsos de memória relativos à mais recente reforma ortográfica. É mestre em filosofia pela UFRJ.

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