O LIVRO E A LEITURA – por Fernando Martinho Guimarães

Certas actividades são muito arriscadas. Dizer isto lembra imediatamente os desportos radicais: skate, parapente, participar ou simplesmente assistir a um programa da casa dos segredos, salto em queda livre, ver os tempos de antena dos partidos políticos em campanha eleitoral, etc.

Todavia, a mais perigosa das actividades é, quanto a mim, a leitura. Ler é, indiscutivelmente, a tarefa que comporta mais riscos. Pegar num livro, abri-lo e começar a ler é, por vezes, uma viagem sem regresso assegurado.

Para o efeito, serve um romance, um livro de ensaios, uma peça de teatro, uma bula, o boletim oficial do governo, o regimento de um órgão intermédio de uma escola, qualquer escola, e por aí fora.

Lidas as primeiras páginas, há qualquer coisa em nós que deixa de ser nosso, que deixa de ser exclusivamente nosso.

No acto de ler, deixamo-nos enredar na trama do romance, no entrelaçado dos conceitos e das ideias, nos sarilhos que as personagens vivem e sofrem. A vida, que era a nossa, com as suas rotinas, os seus pequenos tiques e as suas preocupações, que nos ocupavam os pensamentos e sentimentos, transfere-se, com armas e bagagens, para essa estranha realidade que nos aparece sob a forma de palavras, frases e parágrafos.

É no virar das páginas, lentamente às vezes, precipitadamente outras, que melhor se constata o perigo que é a leitura de um livro.

Na realidade, quando um livro toma conta de nós, não se pode verdadeiramente dizer que somos nós que viramos as páginas. Trata-se, antes, de um mecanismo independente, em que o olhar, ao percorrer a última frase da página, se articula com os dedos, para o gesto perfeito de passar para a página seguinte.

De que modo se pode explicar a distensão do polegar, a superfície suavemente estriada da palma da mão, a forma de tenaz que os dedos, o indicador e o médio, formam, ao juntar-se ao polegar, senão para dar cumprimento a essa artimanha, que a evolução da espécie engendrou, para pegar num livro e virar-lhe as páginas?

Uma engrenagem em que a vontade, que dizemos nossa, desaparece para parte incerta e se torna um mero resíduo daquilo a que nos habituamos a chamar identidade, alma, espírito, consciência, mente, o que se queira.

Esta percepção, este sentimento de desolação e de impotência perante uma força superior à nossa vontade, que acontece na leitura de um livro, é amplificada quando chegamos à última frase do último capítulo. Somos assaltados por um sentimento de abandono, um desamparo de quem perde as referências do tempo e do espaço.

O perigo da leitura é, assim, confirmado, paradoxalmente, no momento em que nada mais há para ler.

É confrangedor observar leitores quando chegam a esta fase. Não aceitando que o livro tenha findado, viram-no e reviram-no, atentam em todos os elementos paratextuais e, com o olhar parado de quem se sente perdido, de quem acaba de perder alguma coisa, fixam uma última vez o olhar na capa do livro, como se fosse um último adeus, uma despedida no cais de partida de um navio que, ao largar, leva consigo as personagens com quem vivemos e sofremos e os conceitos e ideias que nos ocuparam o espírito.

Observar um leitor, assim desamparado, alheado de si e do mundo, fora do que costumamos chamar vida, só pode despertar um sentimento de admiração e de piedade. E, um leitor a quem tenha sobrado um pouco de lucidez, sabe que a única maneira de resistir a essa viagem sem regresso é encontrar rapidamente um outro livro, onde possa perder-se e esquecer-se de si.

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.