A CULTURA COMO PRODUÇÃO DE SI E DO OUTRO (1ª PARTE) – por Francisco Traverso Fuchs

                                                     Cueva de las Manos (Argentina)
  1. O bárbaro como barbarófono

Com um didatismo pouco comum em obras do gênero, o dicionário Le Grand Robert de la langue française (2001) adverte seus leitores de que um dos sentidos da palavra “bárbaro” (homem “incapaz de apreciar as belezas da arte”, grosseiro, bruto, ignorante) “envelheceu por causa da evolução dos juízos referentes a sociedades e culturas diferentes”. Mas se atentarmos às rubricas utilizadas nas diversas acepções do verbete barbare (“envelhecido”, “histórico”, “arcaísmo”), veremos que as marcas de caducidade estão presentes em praticamente todos os sentidos do vocábulo.

Entre eles, o sentido original (histórico) é o mais velado. Somente consultando dicionários, manuais de etimologia ou livros de história descobriremos que a palavra bárbaro (do latim barbarus, derivado do grego bárbaros) significava, seja em grego, seja em latim, estrangeiro; pois esse sentido primitivo, já presente no Linear B paparo[i], caiu em desuso há séculos. Mesmo em grego moderno a palavra não mais significa “estrangeiro”.[ii]

Ainda mais importante do que a etimologia da palavra bárbaro, no entanto, é a etimologia da palavra grega βάρβαρος. Esta deriva de uma onomatopéia cujo referente é a fala do estrangeiro, que não passa, para o grego, de um bar-bar-bar ininteligível.[iii] Assim, o βάρβαρος é o estrangeiro, mas o estrangeiro caracteriza-se, antes de mais nada, por sua fala estranha, balbuciante, incompreensível.[iv] O bárbaro é, em primeiro lugar, o barbarófono, o barbaroglota, o forasteiro que não fala (ou não fala corretamente) a língua grega.

  1. Uma raiz comum a duas concepções de cultura

O conceito de cultura é um operador fundamental da antropologia e das ciências humanas em geral, tendo sido comparado por Kroeber a categorias como “a gravidade na física, a doença na medicina, a evolução em biologia”.[v] Segundo a conhecida definição de Tylor, publicada em 1871, “Cultura ou Civilização, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, direito, costume e todas as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.”[vi]

O conceito elitista (ou humanista) de cultura, por sua vez, enfatiza a busca da excelência ou da perfeição, seja numa determinada área, seja no todo da realização humana. Aqueles que atingem a excelência (ou uma excelência em particular) elevam-se, por isso mesmo, por sobre seus contemporâneos, passando a integrar uma elite que não coincide necessariamente com a elite política e econômica de seu tempo.

Assim, no sentido antropológico, a cultura apresenta-se como horizontal e democrática, pois, além de exprimir um compartilhamento de valores pelos membros de cada sociedade, promove uma igualação de todas as sociedades humanas como produtoras de valores. No sentido elitista, a cultura é, ao contrário, vertical e aristocrática, e exprime o movimento ascensional de um indivíduo ou de um grupo (que pode ser, inclusive, o movimento de toda uma cultura, no sentido antropológico) a um plano superior de realizações e valores. Em resumo, uma noção é relativista e encontra em todas as culturas, por mais diferentes que sejam seus respectivos valores, uma mesma atividade genérica de produção de valor; a outra é absolutista e almeja uma perfeição que somente os iniciados saberiam definir e praticar, estabelecendo hierarquias em toda parte e desdenhando de tudo que seria “inferior”.[vii]

Ora, o bárbaro é justamente aquele que não fala (ou mal fala) grego, estando, por isso mesmo, excluído da compreensão e da vivência plena dos valores consagrados naquela cultura, e também não pertence à pólis, estando, por princípio, excluído do exercício da cidadania que fazia do homem grego, a seu próprio juízo, um homem livre em contraste com os súditos dos impérios despóticos circundantes. O bárbaro é o estrangeiro, mas o estrangeiro é aquele que desconhece ou não domina à perfeição os códigos da cultura grega. Nascido alhures e alheio àquilo que faz do grego um grego, o bárbaro é caracterizado pela falta. Faltam-lhe, a um só tempo, a pertença e a competência cultural.

Desse modo, a etimologia da palavra grega βάρβαρος revela, talvez um tanto inesperadamente, a existência de uma raiz comum a duas concepções de cultura – antropológica e elitista – que não só pareciam ser inteiramente distintas, mas opostas.

  1. Cultura e etnocentrismo

Embora tenham inventado muitas coisas, e entre elas a filosofia e a democracia, os antigos gregos não inventaram o etnocentrismo. Aquilo que a palavra bárbaro exprime com tanta clareza – a  contraposição entre nós (que ocupamos o centro do universo) e os outros (os excêntricos) – está longe de ser uma peculiaridade da cultura grega. Muito ao contrário, o etnocentrismo é universal, e uma das evidências mais conhecidas dessa universalidade é o nome que inúmeros povos dão a si mesmos:

“Em um grande número de grupos humanos, a única palavra com a qual seus membros designam seu próprio grupo étnico é a palavra ‘homens’. A assimilação da etnia a uma espécie de ‘eu’ ideal, reunindo as qualidades do bem e do belo, tem como contrapartida a tendência a situar fora do grupo familiar os povos monstruosos que, pelo seu aspecto e costumes, materializam, em grau máximo, o mal e a fealdade.”[viii]

Os exemplos são muitos: chamam-se a si mesmos de “homens”, “gente”, “povo” ou “pessoas” os Guarani (Ava), os Guayaki (Aché), os Waika (Yanomami), os Esquimós (Innuit);[ix] mas também Bantos, Beothuks, Canacos, Hérulos, Hunos, Kutchins, Maidu, Maoris, Rom, Teutões, Tuaregues, Tunica.[x] “Poderíamos estender indefinidamente a lista desses nomes próprios que compõe um dicionário em que todas as palavras têm o mesmo sentido.”[xi] E ainda que viéssemos a descobrir uma ou outra incorreção etimológica nesse hipotético dicionário, pois a letra é tantas vezes incerta, dificilmente poderíamos duvidar do sentido que o anima, e que é invariavelmente o mesmo:

“Toda cultura opera assim uma divisão entre ela mesma, que se afirma como representação por excelência do humano, e os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dão, é portanto etnocêntrico de uma ponta à outra: afirmação da superioridade de sua existência cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo aparece então como a coisa mais bem distribuída do mundo, e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente não se distingue das outras. Convém mesmo, aprofundando um pouco mais a análise, pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura. Pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura se considera a cultura por excelência. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierárquico.”[xii]

Já havíamos encontrado na palavra bárbaro uma raiz comum aos dois sentidos fundamentais da palavra cultura, mas agora sabemos seu nome: etnocentrismo. A esse respeito, Pierre Clastres não poderia ter sido mais claro: pertence à essência da cultura ser etnocêntrica, na medida exata em que toda cultura [no sentido antropológico do termo] se considera a cultura por excelência [ou seja, a cultura superior, o grau máximo de realização das possibilidades humanas].

Embora tenham inventado a palavra βάρβαρος, os gregos não inventaram os bárbaros. Tampouco (como o próprio Clastres reconhece) o Ocidente os inventou. Os bárbaros foram e continuam sendo inventados a cada encontro entre culturas distintas. O povo indígena que nós aprendemos a chamar de Cheyenne deu a si mesmo o nome Tsitsistas, que quer dizer… “pessoas”. O nome Cheyenne, que esse povo não usa para referir-se a si mesmo, lhe foi atribuído por outra tribo, a tribo Sioux, e significa “aqueles que falam uma linguagem que não é compreendida”.[1]

  1. Cultura e conflito

Se os conflitos entre culturas se limitassem à troca de alcunhas insultuosas, o etnocentrismo teria um caráter mormente cômico. Evidentemente, nada está mais longe da realidade. O corolário da oposição entre nós e outros é a guerra.[2] A beligerância não marcou apenas a vida de cidades ou Estados, mas também a das sociedades tribais. São bem conhecidas as teses de Pierre Clastres a esse respeito: longe de exprimir um impulso biológico, uma reação à escassez econômica ou o fracasso pontual do sistema de trocas, a guerra seria um mecanismo de manutenção das sociedades tribais como pequenas comunidades autônomas e indivisas, ou seja, sem hierarquias internas de poder. Elas não eram sociedade sem Estado, mas sociedades contra o Estado.[3]

A guerra perdeu, entretanto, essa plenitude de sentido que teria chegado a possuir, segundo a visão de Clastres, nas sociedades tribais, e o que a História nos mostra é uma brutal sucessão de sujeições, etnocídios e genocídios. Enquanto se debate entre as dificuldades do multiculturalismo e o renascimento dos nacionalismos, a humanidade parece estar fadada aos conflitos entre culturas e civilizações.[4]

(continua na próxima edição)

[1] GRINNELL, George Bird. The Cheyenne Indians. New Haven, Yale University Press, 1932, Vol. 1, p. 2-3. [2] “Toda denominação de caráter étnico, em épocas remotas, é diferencial e opositiva. No nome que um povo dá a si mesmo existe, manifesta ou não, a intenção de distinguir-se dos povos vizinhos, de afirmar essa superioridade que é a posse de uma língua comum e inteligível. É por isso que, geralmente, o étnico forma um par antitético com o étnico oposto. Esse estado de coisas deve-se a uma diferença, insuficientemente ressaltada, entre as sociedades modernas e as sociedades antigas, quanto às noções de guerra e paz. A relação entre o estado de paz e o estado de guerra é, de outrora a nossos dias, exatamente inversa. A paz é, para nós, o estado normal que a guerra vem romper; para os antigos, o estado normal é o estado de guerra que uma paz vem interromper. Nada compreendemos da noção de paz e do vocabulário que a designa na sociedade antiga se não percebemos que a paz intervém como a solução por vezes acidental, amiúde temporária, de conflitos quase permanentes entre cidades ou Estados.” BENVENISTE, Émile. Op. cit, Vol. 1, p. 368. [3] CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas. IN CLASTRES et al. Guerra, religião, poder, Lisboa, Edições 70, pp. 11-47. Conforme CLASTRES, Pierre. La société contre l’État. Paris, Les Éditions de Minuit, 2009 (1974). [4] HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations? Foreign Affairs, Vol. 72, No. 3 (Summer, 1993), pp. 22-49. [i] https://www.palaeolexicon.com/Word/Show/16902  (acessado em 2020.06.21). [ii] A palavra que continua sendo usada para dizer “estrangeiro” em grego moderno é xénos, que também pode significar “hóspede”. Émile Benveniste explica que “as noções de inimigo, de estrangeiro e de hóspede, que para nós formam três entidades distintas – semânticas e jurídicas – apresentam, nas línguas indo-européias antigas, conexões estreitas.” BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des instituitions indo-européennes. Paris, Les Éditions de Minuit, 1969,  Vol. 1, p. 361. Conforme p. 87 ss. [iii] CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris, Klincksieck, 2009, p. 157. [iv] Ibidem. Segundo Chantraine, a palavra composta homérica barbaróphonos (barbarophónon, Ilíada, II, 867) confirma que o termo bárbaros refere-se primordialmente à linguagem que o estrangeiro utiliza. Vale notar a sobrevivência de palavras que remetem a esse sentido mais primordial, como a própria barbaróphonos (em grego moderno) e barbarismo (em diversas línguas ocidentais). [v] KROEBER, A.L, & KLUCKHOHN, Clyde. Culture: A critical review of concepts and definitions. New York, Vintage Books (Random House), s.d. (1952), p. 3. [vi] TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, art, and custom. London, John Murray, 6ª edição, 1920 (1871), Vol. 1, p. 1. [vii] KROEBER, A.L, & KLUCKHOHN, Clyde. Op. cit., p. 61. [viii] LEROI-GOURHAN, André. Le geste e la parole. Paris, Éditions Albin Michel, 1964, Vol. 1, p. 12. [ix] CLASTRES, Pierre. Do Etnocídio, IN Arqueologia da Violência. Trad. de Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 3ª edição, 2015 (1980), p. 81. [x] LOSIQUE, Serge. Dictionnaire Étymologique des Noms de Pays e de Peuples. Paris, Klincksieck, 1971, pp. 57, 61, 74, 116, 119, 135, 149, 151, 108, 214, 217, 219. [xi] CLASTRES, Pierre. Op. cit., p. 81. [xii] Ibidem.

♦♦♦

Francisco Traverso Fuchs descobriu que o tabaco não torna em fumaça as mágoas, e trocou-o pelo chimarrão. No entanto, devido aos muitos anos de tabagismo, sofre de lapsos de memória relativos à mais recente reforma ortográfica. Ousou traduzir As Leis Sociais, de Gabriel Tarde, foi expurgado e tardiamente descobriu (por que claudica) o Brasil. É mestre em filosofia pela UFRJ, mas prometeu roubar o fogo e tornar-se filósofo.