MARIA SALVADORA – Joaquim Maria Botelho

Desceu do Thalys, o trem de alta velocidade, na estação de Amsterdam. Pensava ainda no letreiro eletrônico que indicava 399 quilômetros por hora, um assombro para quem nunca havia ultrapassado 120. Saiu para a rua e deu de cara com um imenso estacionamento de bicicletas, ao lado da ferrovia. Milhares, estacionadas numa confusão de rodas e guidões, uma aparente visão do caos urbano amontoado. Tentou imaginar a lógica dos ciclistas na identificação da própria bicicleta, na hora de voltar para casa. Ao lado, o braço de mar sobre o qual se estendia a pequena ponte que conduzia ao centro da cidade, com suas flores, canais e complacências.

Vinha de Stuttgart, onde participara de uma semana de treinamento numa terceirizada da Volkswagen. Não ia perder a oportunidade de conhecer os Países Baixos, nem a chance de viajar naquele trem quase a jato. A recepcionista da empresa fez a reserva do hotel na Holanda e passou-lhe uma cópia impressa, com endereço, telefone e código de identificação. Lembrou-se do papel e escavou a bolsa à procura dele. Bolsa de mulher sempre tem forro preto, o que é uma burrice dos designers, porque a gente não enxerga direito lá dentro. Não teve tempo de insistir na crítica porque o papel estava com uma dobra só e foi fácil pescá-lo. Indagou de um passante o endereço, mostrou o impresso da reserva. O holandês, muito alto, muito claro, fez um muxoxo de desentendimento e respondeu num mau inglês que não conhecia nem o hotel nem a localização. Dirigiu-se a outro, que também não pôde ajudar. Enfiou a mão na bolsa e arrecadou do compartimento interno o punhado de moedas reservados para o telefonema. Logo em frente, um orelhão – na verdade uma cabine de telefone. Segurou a mala entre as pernas, botou o aparelho ao ouvido, depositou um tanto de moedas e discou o número. Do outro lado, atendeu uma simpática voz em neerlandês. Podia ter sido em russo ou grego, porque ela não ia entender nada mesmo. Enquanto tentava explicar em inglês o que pretendia saber, viu sendo devoradas as suas moedas, uma atrás da outra, velozmente. Atrapalhou-se buscando mais moedas, não deu tempo, a ligação foi encerrada por falta de crédito. Ainda com o aparelho preso entre a cabeça inclinada e o ombro, olhou para o pouco que restava e soube que não adiantaria tentar outro telefonema. Assustou-se.

Voltou para a estação, arrastando a mala e a agonia. Não conseguia descobrir o endereço e a noite começava a cair. Num guichê, o funcionário sorriu para ela e ouviu que ninguém tinha conseguido informar onde ficava o hotel. O atendente viu o papel, não reconheceu o nome do hotel e fez cara de quem se condoía com a situação da moça.

Desanimada, pensou na sobrinha, mocinha esperta, que andara mochilando pela Europa e arranhava várias línguas. Suspirou, olhando para a mala aos seus pés e disse, quase para os céus:

– Maria…! Ah! Maria!

Maria? – interrompeu o funcionário? – Maria biscuit? Those are made in Zandaam windmills. Now I see: your hotel is not in Amsterdam, but in Zandaam.

O homem olhou de novo o papel da reserva, conferiu o mapa e pronto. Era isso mesmo. O hotel ficava na pequena cidade de Zandaam, famosa pelos seus moinhos. Fez-se a luz! Mas por que diabos a mocinha em Stuttgart tinha reservado um hotel lá, se ela ia ficar em Amsterdam?

Entusiasmado por ter resolvido o problema, o atendente a encaminhou para o guichê correto, orientou-a como comprar passagem para o trem subúrbio e indicou-lhe a plataforma de embarque. Numa viagem de menos de 10 minutos, descia na estação de Zandaam, diante da qual, bem em frente, fica o lindo Inntel Hotels, de bom preço e fora da muvuca. Era uma cômoda alternativa para descansar depois de passar os dias visitando Amsterdam. Entendeu, perdoou e intimamente agradeceu a garota que fizera a reserva de hospedagem. Bastou atravessar a rua, entrar, apresentar o passaporte e subir para o quarto. Lá dentro, a surpresa: no teto do apartamento, ocupando quase a metade da área, uma imensa imagem… da bolacha Maria.

♦♦♦

Joaquim Maria Botelho, jornalista e professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP e especialista em Jornalismo Internacional pela Universidade de Wisconsin, EUA. Foi presidente da UBE – União Brasileira de Escritores por três mandatos, entre 2010 e 2015. Tem 9 livros publicados. Conta com artigos e contos publicados na Alemanha, Argentina, Brasil e Portugal.