EXCERTO DE “Barata, minha barata” – de Alberte Momán Noval

Ninfa

Parte I

 «A luz não é mais do que um remorso. Construíramos um mausoléu imaterial para os nossos mártires sobre uma ideia que nunca foi.» A barata jantava os restos de um animal morto em concorrência com outras, um número indeterminado que chegava com atraso ao festim. Umas anunciavam, mediante o direito consuetudinário, a sua inquebrantável determinação de se alimentarem daqueles restos; outras procuravam na força mais do que no direito a assunção do que nem esgrimiam como tal. As mais miúdas e fracas buscavam as porções menores e mais acessíveis, furtivos e diminutos petiscos que saboreavam longe, afastando-se da contenda. «Esses insetos foram os únicos beneficiados com o caos. Demonstraram aquelas habilidades que aos humanos ajudaram a proliferar.»A noite era um foco de luz sobre a cena. O barulho, como forma mais inútil de comunicação, não era senão um murmúrio que se evadia das suas diminutas cordas vocais. Nem os seus passos logravam descongregar a comunidade. Não significava uma ameaça maior do que a fome. O seu único objeto de culto, os restos de um roedor eviscerado por um veículo, se calhar a sua única religião, a cobiça. Os berros de um moribundo suicida, precipitado duma altura insuficiente, chamaram a atenção dos insetos, que viram no corpo daquele um tesouro ainda maior. Não muito longe, uma criança exercia todo o seu poder de sucção sobre o membro apenas ereto de um obeso mórbido. O farol, longe de mais para fazer pública a ação, iluminava as gotas de suor que caíam da frente, escorregando pelo rosto até o queixo e lá, sobre o crânio do pequeno que apenas era uma sombra entre as coxas daquele que sustinha a sua cabeça contra a entreperna, mantendo-o ajoelhado, em industrioso afã, ao tempo que a massa do homem repousava sobre a berma, apoiando as costas sobre um muro que mitigava os seus esforços por encher a boca daquele miúdo.

Excerto de Barata, minha barata. (Chiado. 2018)

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Alberte Momán Noval. Ferrol. 1976. Autor en lengua gallega, con más de una decena de libros, tanto en poesía como en narrativa, que se inicia en el género fantástico con esta obra editada por Círculo Rojo.