CESARINY por Marilene Cahon

A ilha misteriosa de Mário Cesariny de Vasconcelos
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
Mário Cesariny, in “Pena Capital”

Poeta e pintor, considerado o principal representante do surrealismo português. É de destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e historiador das atividades surrealistas em Portugal.

Um homem fora de seu tempo. Eis a melhor definição para Cesariny.

Nasceu em Lisboa em 9 de agosto de 1923 onde também morreu em 26 de novembro de 2006.

Foi em 1947 ao lado de figuras como António Pedro, José Augusto França, Cândido Costa Pinto, Vespeira, João Moniz Pereira e Alexandre O´Neill, como forma de protesto libertário contra o movimento do neo-realismo, dominado pelo Partido Comunista Português, ao mesmo tempo que também não alinhava com o regime salazarista, que cria o seu surrealismo português.

Cesariny adota uma atitude estética de constante experimentação nas suas obras e pratica uma técnica de escrita e de (des)pintura amplamente divulgada entre os surrealistas. A sua poesia é animada por um sentido de contestação a comportamentos e princípios institucionalizados ou considerados normais nos campos do pensamento e dos costumes. Ao recorrer a processos tipicamente surrealistas (enumerações caóticas, utilização sistemática do sem-sentido ou do humor negro, formas paródicas, trocadilhos e outros jogos verbais, automatismo, etc.) alcança uma linguagem que encontra o equilíbrio entre o quotidiano e o insólito. Nos últimos anos de vida, desenvolveu uma frenética atividade de transformação e reabilitação do real quotidiano, da qual nasceram muitas colagens com pinturas, objetos, instalações e outras fantasias materiais.

No Surrealismo encontrou o espaço de liberdade criativa que procurava.  Usava o sonho, a imaginação, o amor, assentes na técnica do automatismo psíquico e do acaso, sem imposições estéticas ou morais. Tudo de acordo com a sua personalidade inquieta, polémica, subversiva. Em Portugal  exercia sua vontade de transgredir e de desafiar a poderosa máquina da ditadura. Queria ser livre no seu país. “Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”.

Sua poesia é um registro essencialmente surreal sustentado em jogos verbais, trocadilhos, paródias, humor negro, nonsense e enumerações infindáveis. Caracteriza-se pelo vivo e lúcido sarcasmo, pelo impetuoso e angustiante lirismo, assente numa linguagem rica de expressões antagônicas, de imagens, e de sugestões peculiares.

Famosa é sua frase ao final das conferências e palestras para as quais o convidavam:

– Estou num pedestal muito alto, batem palmas e depois deixam-me ir sozinho para casa. Isto é a glória literária à portuguesa.

Sobre o que escrevia afirmou: “Existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser e não deixam de ser apercebidos contraditoriamente.”

(Passagem do “Segundo Manifesto Surrealista” (1930), de André Breton e selecionada por Mário Cesariny para integrar o “Manifesto Abjecionista”).

Em suas pinturas foi um autor espontâneo e insurgente, que bebia do misticismo e da magia das suas influências, dando primazia à cor e à anarquia figurativa. Pinturas, colagens, ‘soprografias’, e cadavres-exquis (que consistia na elaboração de uma obra por três ou quatro pessoas, num processo em cadeia criativa, em que cada um dava seguimento, em tempo real, à criatividade do anterior, conhecendo apenas uma parte do que aquele fizera) fazem parte da sua obra plástica. No entanto, a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais.

Para Cesariny o amor era “um desmesurado desejo de amizade”, em que “o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos”, e “a única coisa que há para acreditar”.

O poeta defendia que se pode morrer de amor, mas considerava que “também se pode morrer de falta de amor”.

O Surrealismo de Cesariny é uma forma de insurreição permanente, na arte e na vida.

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Marilene Cahon, brasileira, professora, escritora, poetisa, cidadã caxiense, autora dos quinze volumes que deram a Caxias do Sul o título de Capital Brasileira da Cultura em 2008. Membro da Academia Caxiense de Letras a qual presidiu no biênio 2012-2013, ocupando a cadeira de número 15.