LEILA FERRAZ – BRASIL – (1944)

A imagem que nos aterra a existência, que se torna um testamento usual, um versículo sempre na ponta da língua, cobra hoje uma tarifa existencial que nos limita a própria reflexão sobre o que somos ou deixamos de ser. Somos viciados em uma demanda reiterativa. Algo nos impede de experimentar um mundo outro sob ou sobre a capa de uma realidade averbada pela crença na imutabilidade da vida. Ora, mas a vida é tudo menos imutável. Mesmo no plano sagaz das religiões a vida é o preço, a súplica, a tormenta, o vislumbre, o apogeu, a dádiva, e não é possível pensar em nenhum desses atributos como um álibi inquestionável que não permite à espécie humana mudar sequer de postura na cadeira em que presta depoimento sobre sua existência. A fotografia é uma das mais complexas faturas da criação artística, a começar pela resistência da arte entendê-la como sua cúmplice. A beleza é outro aspecto frequentemente confrontado pela incredulidade em que o gesto humano seja tudo menos apenas uma reação brutal à diferença. A brasileira Leila Ferraz (1944) é poeta, ensaísta, fotógrafa, desenhista. Participou ativamente do Movimento Surrealista de 1965 a 1971 planejando e organizando a 13ª Exposição Internacional do Surrealismo, no Brasil, em 1967, onde expôs desenhos e objetos de funcionamento simbólico. Motivada por assuntos pessoais, manteve-se quase sempre à margem, sem que, no entanto, deixasse de criar. Em uma entrevista que lhe fiz, ela aclara entusiasmada: o surrealismo me supriu na realização plena tanto nas artes plásticas, como na poesia e literatura. Meus contos são tomados pelo pensamento mágico. E a poesia, pela total entrega aos signos e automatismo – que sempre explodiu. Minha mente já nasceu dotada para a total compreensão e expansão dos significados das palavras. Eu as animei de acordo com minhas emoções e desejos de expressão. Meu mundo e o mundo dos significados se contemplaram um no outro. Para mim as palavras são deuses que se recriam eternamente em meus poemas, falas e artes plásticas. São a manifestação do meu imaginário em constante movimento e assim, infindáveis. Um estado de puro prazer. Publicou dois livros de poemas, Cometas (1977) e Poemas plásticos (1980), porém a fatia mais expressiva de sua poesia permanece inédita.

DIGITO EM TUA LÍNGUA ESTE RECADO

Só faltam cinco.
Vou criá-las em preto e branco para que as cores não me seduzam.
Elas terão que ter suas próprias seduções.
Nascerão entre brancos, negros e acinzentados.
Uma palheta onírica e louca será usada para cometê-las.
Ultrapassarão todas as demências sem grandes alardes.
Santas madonas proscritas de suas sacrovestimentas.
Difícil será trazer um toque masculino no céu de tantas bocas.
Como será entrelaçar barbas em cabelos?
Procuro a vertigem dentro de vórtices escalando hermafroditas irracionais em suas diárias prestidigitações.
Inconsciente dedilho cada letra do imponderável sem caminhos de volta.
Refeita de tanto prazer eu me batizo amante.

POR TRÁS DA PELÍCULA DE UM DOCUMENTÁRIO

Os movimentos de mulheres dançando entrelaçadas por véus
são em si alguns bons poemas. Homens viris demonstrando força
não chegam a me emudecer. Há idosos em seus andares hesitantes
e crianças em passos que não são. As danças voadoras das imagens
além de poéticas evidenciam a beleza feminina
como em tudo nesta cosmologia planetária do corpo humano.
Às vezes me ponho a pensar na beleza de Cesariny
nos falando de sua infância, das brincadeiras na praia.
De sua juventude e amigos, e da alegria libertária
de que foi acometido quando finalmente, desempregado,
se viu poeta de corpo inteiro. Que belo homem!

Tão sensual e sedutor em seus 90 anos! Que belo!
Brincando meio sem jeito, com um sorriso ainda de menino,
ao mexer em seus parcos cabelos e boca ansiosa por tabaco.
Como ele me é conhecido, embora talvez jamais nos tenhamos visto.

FALÉSIAS DO RENASCIMENTO

Querido meu que de tão encantado não me escuta.
Falo de dentro de minha caverna.
Origem e fim de todos os mitos.
Meu teto se multiplica em abóbodas abertas para a luz do dia.
Símbolos corrompidos desceram comigo
até os confins dos infernos à procura do bem e da verdade.
Em busca da luz e dos polos das esferas,
quando apenas uma gota de amor transmigra do real ao inimaginável.
Estamos hoje em toda parte.
Cada toque meu ressuscita o teu.
Ao cair o dia em seu vaso profundo misturado à minha doçura.
Assisto minha mocidade espalhar-se pelo céu tranquilo.
Onde amante sobre amante se declamam unidos em estrelas do mar.

 

ESCADARIAS ENTREABERTAS

Meu querido Floriano, meu entranhável verbo ser.
Pequena mecha de cabelo solto sobre a testa.
Como um cordão de prata, a linha da cabeça atravessa minha palma
numa existência sequencial de instantes.
Eternas estrelas girando seus olhos em cólera sobre um tapete negro e sonoro como um tambor de cetim lançam seus fogos incandescentes entre as sombras de minhas pernas,
estas raízes soltas em noites de desespero entreabertas através das eras,
estas elipses de desgelo glacial e enlouquecidas varando mais uma vez a curva da floresta e a noite sem teto de desobrigados limites,
de conhecer o esconderijo das chaves nas fechaduras dos mistérios desta mulher.
Jamais fomos tão vívidos como neste natimorto instante de pérolas ao soltarem-se de seu colar.
O robe entreaberto revela todos os nossos esconderijos,
devastando as bocas de vulcões por um instante doido.
Rompo o traçado da linha da vida e me enrolo em serpente ao redor do teu corpo,
o corpo manto e luvas de amor desmaiadas em ar e água pelas solas dos teus pés
e na lentidão inofensiva eu arrasto o tempo dos tempos,
como se a realidade já não fosse o que suspeitava ser.
Amor de um abissal desmaio, de um mergulho nas sombras do interior de uma caverna, das profundezas do ser em ti apenas uma presa imemorial neste cair de tarde.
Mais uma vez e mais inexorável e eterno sem olhos para o passado.

A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO[1]

A minha alma avulta seus planos quando nela te vejo refletida,
como um relâmpago ao ser despistado reflete teu beijo ali foragido.
Esculturas de carnes molhadas refletem suas almas em rendas,
como um lago rasgado pelo relâmpago revela um desejo sagrado.
A caminho do abismo os reflexos entoam um mantra esquecido,
como um ofertório entoa uma descarga de sussurros em cada ninho decifrado.
Um beijo em bocas desmaiadas a galope restaura o ossuário do espanto,
como se houvéssemos abandonado o tempo a carpir solitário seu destino.
De um extremo a outro de teu corpo semeei caravanas de um mesmo absurdo,
como quem altera a rota do desejo e reescreve os papiros de uma saga desconhecida.
Pérolas e cerejas cravejadas na areia.
Bocas de ostras aos poucos tragadas.
Tudo é sal cintilante, deixando vestígios e pegadas.
Já não há o que ocultar, as grutas foram defloradas.
Um sabor de matizes misturados a aromas desconhecidos revela uma cartilha de gozos jamais escrita.
O que era um signo adivinhado agora é um olhar desvairado.
Corpos que não mais se contêm.
Membros convulsionados.
Prazer que ultrapassa os limites dos espaços conformados.
Estamos condenados ao desterro dos desejos.
Submissos aos selvagens instintos dos desterrados.
Não há lugares possíveis para quantos de nós cruzem suas taras mais devotas.
Condenados a cada nova safra de errâncias.
Alimentados pelo êxodo de tantas quimeras que rastreiam sua permanência no abismo oceânico,
nos sítios mais imprevisíveis em que comungamos insolentes desvarios.
Suspensa me vejo.
Erguida pelos teus dedos ousados que me penetram e elevam como se o corpo do amor uma pluma fosse.
E me pintas as auréolas de púrpura e os lábios de vulva escarlate.
Tens dedos de batom e hálito de almíscar.
Já não sabemos em que plano copulamos e nem qual reino habitamos.
Somos seres proscritos para sempre banidos.
Somos luzes capinando uma variação de escalas muito além do tempo.
Somos deuses, larvas, umidades promíscuas, anzóis viciados de um tear de crimes aquáticos.
Esferas contraídas alimentando os olhos que se multiplicam em teus penetrantes dedos.
Somos um ninho de espirais ovuladas antes que as trevas retornem a seu pasto.
Sorvo os últimos orvalhos de lucidez antes de banir meus tênues vestígios de razão.
Não há mais caminhos. Nem atalhos. Nem indícios.
Joguei-me cega de entrega em entrega até perder os sentidos.
Já não serei quem fui e aqui não estou.
O espaço ampliou-se imenso e irreversível.
Mergulho no infinito. Perdi-me em seu sem fim.
Eu te recrio em meu ser, abrindo a tua carne para te ler por dentro.
E o que leio é uma fábula recortada nos grandes lábios do horizonte.
Um escaravelho vaga pela eternidade perdida, assombrado ainda com a altura de teus mamilos redecorando as miragens.
Aceite meu sono e desmaio.
Meus olhos te dizem adeus.
Por hoje adormecem meninos.
Estes olhos de tantos quereres.
A noite suspira recontando seus mistérios.
Meus beijos anotam o que farão contigo.
Dorme, que eu não conto a ninguém onde estamos.

OSSUÁRIO DE FONTES

Esgotei minha última saliva.
Minha umidade esvaiu-se em leite de amêndoas.
Não há lágrimas descendo as escadas.
Estou estranha, tão estranha, e não me basto.
Pouco sei desta mulher que nasce e renasce a cada manhã,
e não se põe jamais, porque a ela pertencem as linhas da vida
que unem as artes e os manifestos.
Esta tresloucada fêmea ensandecida capaz de desnortear o mais sério dos eruditos.
Que depoimento é este que tanto queres?
Para mim se assemelha a uma equação da própria física que ainda nem descoberta foi.
Um depoimento afetivo de memórias juradas ao esquecimento.
Sim, reunirei minhas últimas forças e dormirei com os protagonistas de minhas lembranças.
Com ou sem as suas próprias naturezas devastadas.

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Obra consultada: poemas inéditos enviados pela autora.

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SURREALISMO A PALAVRA MÁGICA DO SÉCULO XX

Dossiê a cargo de FLORIANO MARTINS

Cumplicidade editorial: revista Athena (Portugal) e Agulha Revista de Cultura (Brasil)

Índice geral

01 | 1896-1966 | França | ANDRÉ BRETON
02 | 1898-1978 | França | VALENTINE PENROSE
03 | 1903-1956 | Peru | CÉSAR MORO
04 | 1904-1987 | França | ALICE RAHON
05 | 1906-1999 | Reino Unido | EMMY BRIDGWATER
06 | 1910-1997 | Argentina | ENRIQUE MOLINA
07 | 1914-1987 | Grécia | MATSI CHATZILAZAROU
08 | 1914-1987 | Japão | KANSUKE YAMAMOTO
09 | 1917-1961 | Ucrânia | MAYA DEREN
10 | 1920 | Portugal | CRUZEIRO SEIXAS
11 | 1925-1988 | Bélgica | MARIANNE VAN HIRTUM
12 | 1927 | Chile | LUDWIG ZELLER
13 | 1929 | Portugal | ISABEL MEYRELLES
14 | 1933 | Brasil | ZUCA SARDAN
15 | 1934-2011 | Cuba | JORGE CAMACHO
16 | 1936 | República Checa | ARNOST BUDIK
17 | 1944 | Brasil | LEILA FERRAZ
18 | 1946 | Portugal | NICOLAU SAIÃO
19 | 1953 | Gales | JOHN WELSON
20 | 1961 | Chile | ENRIQUE DE SANTIAGO

[1] Poema escrito a quatro mãos, com Floriano Martins.