POEMAS DE Lucas Rolim

© Peter Castetlon

[AS DORMIDEIRAS SE AJUNTAVAM]

As dormideiras se ajuntavam
no útero coberto pelo musgo,
enterrado sob as ervas e o som,

postas no árduo dever de urdir a colina,
seus braços pronunciados nas substâncias da terra,
onde os ruídos e os favos tocavam-se
e transmutavam-se. Turvavam-se.
Ao modo de uma linguagem elementar.

Era este teorema da flauta tudo que
meu coração enterrava vivo. Hora ambígua e azul,
com as luas do pulso transitando
entre os jardins das casas, alvoroçadas desde a raiz.

O dia parecia não poder levantar-se
mais que alguns metros, como se um pequeno deus,
do exato volume dos pólens, nascesse ou morresse
àquela hora; ou fosse um fantasma ferido
a dança contínua à outra margem do rio.

Talvez oculta entre as dormideiras e os favos,
a flauta envolvesse nas ervas o seu pulmão;
talvez se fizesse encher o ar de brancas mariposas;
talvez dormisse o mais triste homem
o mais tenro sono.

♣♣♣

[SOBE A NOITE ENTREPOSTA AOS VAGA-LUMES]

Para Herberto Helder

Sobe a noite entreposta aos vaga-lumes,
entregue aos abismos. Quarto de joia
queimando sobre o mármore exaltado,
quando o mergulhador encontra a mão sobre
o sangue, boiando em penas leves, e o homem
entra na cabeça, subterrâneo, como se
partisse o fio da madrugada.

A cabeça prolonga-se até as luzes.
O homem toca o centro da boca.

No centro está o silêncio, o branco das substâncias.
No centro está o homem, colidindo com o centro
e tocando-me nas imagens, por onde escorremos
até a púrpura isolada na ilha da Madeira.

Ardiam-lhe a pedra e a pedra sobre a idade.
Os rochedos menores, amava-os com a erva acurada.

Sobre a cabeça
estava a cabeça — e a gangorra, tornada
amarela, onde de um certo ponto assistíamos
aos seres do ar baloiçando.
Aproximavam-se e tornavam-se pequenos,
ora mais perto, ora invisíveis — apenas supostos.
Havia uma hora em que era possível tocá-los,
estar ao mesmo nível, tombar em seu ritmo
de tombo, supostos e exatamente aéreos,
pronunciados nos tufões.

Estávamos para além do ar de uma noite ordinária,
suspensos e entregues na raiz do Funchal,
dinamitados até o espírito.

Não saberia dizer com que palavra dava
de comer às lâmpadas ou que aroma dizia
para chamar os besouros.

Sei que os relógios não nos encontravam.
Passava ali o anjo respiratório e não reconhecia
nossos nomes engolfados sob a árvore.
Eu observava o olho cravado na face do homem,
enquanto as lacraias dormiam em seu interior
vulcânico. Pudesse, eu adivinharia quantos dedos
tinha dançando em suas têmperas.

As paredes mugiam ao longe.

Sabíamos dos muros e de sua demora.
O instante tornava-se eterno
— imensamente, salvava-me.

♣♣♣

[À SOMBRA DO JARDIM A ESTÁTUA SE LEVANTA]

À sombra do jardim a estátua se levanta.
O escuro de uma semana pousa sobre as abelhas.
Tudo no pátio é mais líquido porque sagrado.
Passa o general com seus cavalos luminosos,
insubstituível como um orbe incandescente.

Passa arrastando as horas nos estribos,
movendo a sombra na pedra da sombra,
ardendo como arde uma consciência.

As coisas fundem-se na atenção branca de um
corpo vazio, enquanto os espelhos rotacionam
seus reflexos projetados sobre as coisas sobre o
corpo sobre a mesa sobre o vazio.

Ó nuvens como móbiles no céu desvairado!
O que impedirá a nuvem de ser nuvem?

Sei que a água parte em curtos trechos de voz.
Sei que se conjuga com as vespas, com a noite.
Conjuga-se com a morte. Sei que há uma ilha
suspensa sobre a água, posta acima do mapa.
Sei que espera ser encontrada
— pelos ventos, pelos deuses, pelas mulheres.

A claridade dos peixes cintila no barco.
Dançam os sapatos mas o corpo já não há.

Minha sorte atirada a teus amores lancinantes,
meu pensamento jogado entre os ciclones
e perdido em tuas coxas.

Tudo é mais sagrado a esta hora.

♣♣♣

[TENHO-TE AQUI COMO UM BRINCO ALUCINANTE]

Tenho-te aqui como um brinco alucinante
ou um guarda-roupa muito antigo.
Tapeçaria virgem repousando no ar.
Futuro degrau dos amantes — sanguíneo.

Sou tua barba exausta
— esticada até o céu pelos ofícios da adaga,
atingida na idade com a temperatura,
a palavra e a substância da criança atmosférica.

Última esperança posta à prova dos animais:
este novelo atravessado desde a antiguidade,

esta mão convertida em agulha, indicando o sul
nos mapas giratórios.

O século nos parte ao meio. Silencioso.

Por que não haverias de jantar comigo aquela
noite, quando já não tínhamos um único plano
de escape, quando a última salvação
eram as pontes de sargaço?

Recolher o espólio dos amores é preciso.
Afundar o restante — cavalos, rotas, ciclones,
cidades inteiras erguidas sobre a claridade
de um nome. Um estremecimento.

É hora. Os rouxinóis mudam de hemisfério.
Uma sombra cai nos quintais, liberada pelos
incensos. Tenho-te agora na vertigem do alpendre,
tornado paisagem interior da paisagem

— um espasmo contínuo, uma lembrança arenosa

e todo o fogo arderá em tua memória esta noite.

♣♣♣

[SOU ESTE COMETA VAZADO]

Sou este cometa vazado
em vermelho e púrpura
— vazado em líquens e nanquim chinês,

ocultado para sempre das margens do céu
porque malhado em ruídos de terra
e alfabetizado nas grutas, com a gramática do solo.

Sou este cometa atravancado

sobre o globo, aceso, posto a gravar calendários.
Gradualmente separado pelas horas giratórias.

Luz parca como os lençóis brancos
— marcados — manchados de brancos horrores,
ou alargados nas catedrais,
onde morre-se ou morre-se.

Sou esta begônia ou este sangue,
alastrando-se de casa em casa,
no escuro iminente das casas,
e procuro uma palavra tão antiga que me sirva
de presença.

Quando te sentas na grama,
ouves as palavras retirando-se das fibras?
Para que me perceba é suficiente olhar em volta,
nas pombas feridas, nas veias abertas,
nos garotos atirando pedras aquecidas aos sapos.

E se entre as nódoas nos ossos
surge uma claridade
e abro-me na presença de um deserto interior
— noturnamente azul —
se entre as nódoas surge uma claridade
por onde passa a voz de um relógio antigo,
então há os mares,
e navego para além de seus aquários,
para além de onde tocam as barbatanas
e para onde levo meus nomes,
atados às suas datas.

Por vezes, meu rosto se apaga das águas,
antigo e sem espessura.
Levanto-o como levanta-se um anzol.
Levanto-o como as ervas exatas no incensário.
Carbonizadas. Mortas. Vivificando.

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Lucas Rolim é poeta, tradutor e editor independente. Como poeta, publicou os livrinhos artesanais “Os Cantos de Eleanor” (2017), “Terrário” (2017) e “O Caderno Surrealista de Ibán” (2018), através do seu selo editorial de publicações artesanais, Kizumba Edições, e seu livro de estreia, “O Mirábolo”, pela Editora Moinhos, também em 2017. Tem poemas publicados em jornais, sites e revistas do Brasil e de Portugal. Faz parte do Coletivo Acrobata, que publica a revista de arte contemporânea “Acrobata”. Nasceu em Teresina, onde habita e é habitado.