A SANTA – por Cláudio B. Carlos

 

DELA guardei comigo uma medalhinha amassada com a imagem de uma santa que carrega um guri no colo. Quando perambulava por aí a trazia no bolsinho da fatiota.

Quando assentei parada aqui na fazenda depositei-a pendurada a um prego sobre a cabeceira do catre. Rezar rezar, não rezo, que não sei nem nunca aprendi, mas proseio co’a santa vez por outra. E não é só pra pedir que falo com ela. Aprendi que na vida se tem que agradecer às vezes. Mesmo que se tenha pouco. Pior seria se fosse nada.

POR aqui faço de tudo. Tudo que um piá pode fazer, que o patrão é homem bom e não força sua montaria. Tiro o leite, que é tarefa buena, pois sou o primeiro a beber dele de manhã. Direto da teta pra caneca. Da caneca pra goela. Aí é só lamber o bigodinho de apojo que fica no beiço. Também varro o terreiro, dou boia pras galinhas, pros porcos, pros patos, pros cavalos e cuido de manter o nível do sal do cocho daqui de perto da casa, o da Bragada, a que dá leite pros da casa. O de vender são os peões que tiram e essas vacas nem ficam aqui por perto…

DE tarde vou ao grupo, que o patrão me quer fazendo conta, lendo e escrevendo. Pra mim já tá bom assim que já sei assinar o nome e o reconheço no papel.

DE tardezinha repito as obrigações de tratar da bicharada e depois da janta me deito. Bem cedo, que aqui faz bastante frio. Até mesmo no verão. Aqui sempre sopra um ventito bagual que aprendi com a tia Leonor, a minha professora, se tratar de uma tal de brisa. No quarto, às vezes, fico folheando umas revistas de mulheres peladas, que consigo de contrabando com o negro Bocage. Nessas horas fico meio desajeitado nos pelegos, me dá uns troços diferentes, o pau endurece e aí não tem jeito. Não durmo enquanto não castigo o bem-te-vi.

O BORGES disse que guri que muito se espunheteia cria cabelo nas mãos, mas eu tenho certeza que é mentira dele, ou então milagre da santa. Por falar nela – na santa –, quando eu preciso fazer essas minhas necessidades com as gurias das revistas, eu tapo os olhos dela. Penduro as bombachas por cima. A peonada diz que dá pra guri fazer com as ovelhas ou com alguma égua mais mansa, ou até mesmo com porca que é bem parecido com mulher.

Mas eu nunca tive vontade. E acho que se tivesse vontade teria medo. Medo de algum coice ou que o patrão me pegue, ou pior ainda, que a mulher dele me pegue. Ou muito pior ainda, que a filha dele que é guria meio fresca, me pegue. Credo. Me mijo de medo só de pensar…

AQUI NA FAZENDA tenho um cusco de meu mesmo. Cruza de ovelheiro com perdigueiro. É meu amigo mesmo, o vivente.

Quando saio pro mato pra caçar passarinho, não de arminha de chumbo, que o patrão não deixa, de bodoque mesmo, ele sempre vai junto comigo. Até já me aliviou de um bote de cruzeira, o bichão. O bodoque quem fez foi o Borges, que é mais meu amigo do que o Bocage, apesar de o Bocage me emprestar as revistas. É que o Bocage é mais bagaceira. Falquejou bem direitinho com o facão uma forquilha de figueira, amarrou uma borracha bem novinha de câmara de pneu de bicicleta, que conseguiu com o Jarí da borracharia, e me deu. Era meu aniversário. Nesse dia, o patrão me deu um relogito que uso só às vezes, porque o saber que o tempo escorre me angustia. O Bocage, à noite, foi ao meu quartinho, me entregou uma revista novinha, plastificada e tudo, me deu uma piscadinha e disse que eu não precisava devolver. Tá com as páginas surradinhas já e algumas meio que coladas por causa de uns acidentes de percurso que andei tendo…

DE VEZ EM QUANDO choro. Nessas horas me escondo. Vou até a velha ponte quebrada e ali debaixo dela, sentado no barranco da sanga fico a escutar o lamento chiado das águas. Tenho vontade de mijar quando escuto o barulho que faz a água escorrendo.

Quando lavo a cara de manhã cedo também sinto vontade de mijar, aí eu fecho a torneira, mas não adianta. Depois da vontade nascida só mesmo o prazer do mijo.

QUANDO estou ali, na sanga, penso nela. Não consigo lembrar do rosto dela. Só dos cabelos lisos, longos, e dos olhos tristes e grandes, e das mãos de dedos longos, unhas bem curtinhas e judiadas pelo sabão, pelo frio e pela água gelada. Se queixava de dor nos braços. Batia na tábua um tanto de roupa por dia. Lembro dela me dando a imagem da santa. Com a manga da camisa seco as lágrimas, afago a cabeça do cusco e volto pra casa, ora correndo atrás dele, ora ele atrás de mim. E olhando pro céu azul azulzinho daqui, me consolo. Que vida melhor do que essa pra um guri?

“Doracy lavando roupa” por Romeo
Glossário
Bagual – selvagem, violento.
Bodoque – estilingue.
Bombachas – calças largas.
Catre – cama pobre e tosca.
Cusco – cão.
Fatiota – traje, vestuário.
Montaria – cavalo.
Pelego – pele de carneiro (com a lã), geralmente usada sobre a montaria.
Piá – guri, menino.

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Cláudio B. Carlos é poeta da nulidade, filósofo do nada e editor de livros marginais. Nasceu em 22 de janeiro de 1971, em São Sepé, RS, Brasil. Tem diversos livros publicados. Vive em Belo Horizonte, MG.

3 comentários em “A SANTA – por Cláudio B. Carlos”

  1. Cláudio B. Carlos diz:

    Obrigado, amigo.

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