
Hoje em dia, muita gente acha que sabe muito sobre o mundo e sobre as coisas só porque vê coisas nas redes sociais. É nelas que se concentra um dos maiores fluxos de comunicação e disseminação de informação, o que é fantástico, mas também aterrador. Aquele hábito de pesquisar ativamente, que se verificava nos primeiros tempos da internet, praticamente desapareceu. Em vez disso, a internet tornou-se um espaço de consumo, onde os utilizadores consomem só o que os algoritmos decidem mostrar. Muitas vezes, sem se aperceberem, cedem a autoridade sobre o que é verdadeiro ou relevante ao que aparece no ecrã. Agora, é normal as pessoas terem uma opinião, por mais disparatada que seja. Toda a gente se sente confiante para dar a sua opinião. O problema surge quando aquilo que deveria ser encarado como uma opinião pessoal e subjetiva, como um saber informal ao que os gregos chamavam doxa, é agora adotado como conhecimento rigoroso, verdadeiro e objetivo. Esta distorção séria do conhecimento ganha força numa época em que a verdade é cada vez mais relativa. Vivemos tempos em que a objetividade está a ser destruída pela tirania narcisista da subjetividade. Antigamente, as pessoas debatiam de forma racional, mas agora parece que só interessa o barulho. A opinião de um influencer parece valer mais do que a de um perito, não porque é mais verdadeira, mas porque chega a mais pessoas. Neste novo sistema, o valor de uma opinião não depende de ser coerente ou adequada à realidade, mas da capacidade dissuasora do comunicador.
Este comportamento acrítico cada vez mais banalizado acaba por reforçar um filtro invisível gerado pelos algoritmos, bolhas de confirmação e hábitos passivos de consumo com consequências diretas às formas de pensar, sentir e agir de cada um de nós. A nossa atitude tem sido, sobretudo, passiva. Confiamos nos algoritmos como se fossem neutros ou sábios, mas não são. Eles são programados para manter a nossa atenção, para gerar cliques, polémicas, emoções fortes, mesmo que isso implique mostrar mentiras ou meias-verdades. E enquanto isso, espalham-se fake news, teorias da conspiração e até campanhas políticas pouco éticas que se aproveitam deste grande circo.
Fruto da preguiça mental e do encantamento algorítmico, a sociedade tem carregado consigo opiniões baseadas na desinformação orquestrada pelos engenheiros da mentira. De facto, há quem lucre, e muito, com a nossa atenção distraída e o espírito crítico adormecido. Neste cenário duvidoso, cabe a cada um entender que não somos apenas consumidores de conteúdos, somos o próprio produto.
As redes sociais também se tornaram numa hipérbole do que inicialmente, Guy Debord (1931-1994) em 1967 cunhou de sociedade do espetáculo: onde as pessoas investem grande parte da sua líbido para exibir uma versão aparente de si mesmas. O resultado? Uma construção individual e social dominada pela força das imagens e das aparências que substituem a experiência direta e autêntica. Onde o ser dá lugar ao parecer, isto é, onde as identidades se mascaram no sentido de corresponderem a um molde imposto pelo correr das massas. Atualmente, no digital, tudo vira conteúdo: a intimidade, a dor, a alegria, a indignação, inclusive a estupidez e a falta de empatia. O importante é que as visualizações, os likes e os seguidores continuem a aumentar. A vida transforma-se numa sucessão de performances, sem qualquer compromisso com a verdade ou com um sentido maior. E é precisamente por essa falta de compromisso que a desinformação se tornou num dos sintomas mais visíveis e preocupantes deste cenário. A realidade que muitos não querem aceitar, é que as redes sociais não foram feitas para promover a verdade, mas sim para capturar a nossa atenção através de um espetáculo encenado pelos mercados. E o que prende a atenção nem sempre é o mais verdadeiro – é o mais chocante, o mais emocional, o mais polarizador. A isto junta-se ainda o ciberbullying, a cultura do cancelamento e a vigilância constante. Sim, vivemos sob um olhar constante. Um novo panóptico, mas agora digital, sem espaço físico e não coercivo como outrora fora projetado por Jeremy Bentham (1748 -1832).
No panótico de Bentham, um único vigilante podia observar todos os prisioneiros sem que estes soubessem se estavam a ser vigiados. No novo panótico digital, todos participam da vigilância e todos se expõem voluntariamente. Hoje, o olhar de controlo já não vem de fora, está dentro de nós. Como explica bem o Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço (2013), já não vivemos sob a disciplina rígida das antigas fábricas. Em vez disso, exploramo-nos a nós próprios. Ninguém nos obriga a ser produtivos, somos nós que nos auto pressionamos. Nesse sentido, achamos que somos livres. Mas, no fundo, acabamos presos a uma lógica de desempenho constante, como se fôssemos produtos a tentar provar o nosso valor a tempo inteiro.
Dada esta breve indagação que concerne ao contexto sociotécnico contemporâneo, evidentemente, a educação enfrenta desafios profundos. Primeiro, porque sofre as consequências indiretas do problema supracitado, isto é, o ambiente educativo concebido idealmente como um espaço de reflexão, construção de sentido e formação do sujeito, é agora atravessado por uma lógica de fugacidade que lhe é externa. Os alunos, imersos desde cedo num universo de estímulos visuais e recompensas instantâneas, chegam à sala de aula com uma relação fragmentada com o saber, marcada pela impaciência, pela distração e pela dificuldade em suster a atenção. São tempos em que o conhecimento perde valor diante do entretenimento, e o esforço diante da gratificação imediata. A juntar a isso, temos uma educação (um pouco por todo o mundo), que se tem vindo a deteriorar progressivamente pelos valores internos que tem adotado e preconizado.
Repare-se que, mais do que a simples transmissão de conhecimentos, educar deve ser um processo de emancipação humana. Não basta formar profissionais competentes, é preciso formar seres humanos capazes de questionar o mundo à sua volta. A educação não pode limitar-se a transmitir conteúdos técnicos como tem sido a prática habitual nos últimos anos. O seu papel deve ser muito mais profundo: formar pessoas conscientes, críticas e emocionalmente preparadas para a complexidade crescente do mundo contemporâneo.

O filósofo e pedagogo Paulo Freire (1921-1997), lembrava-nos que o ser humano é inacabado por natureza, em constante construção. E é justamente essa consciência da incompletude que torna a educação num ato profundamente humano. Não nascemos humanos – tornamo-nos. Educar, cuida de cultivar no educando a autonomia, a responsabilidade, a sensibilidade e a capacidade de sonhar com algo na vida mais elevado, de modo a transcender a nossa categoria de meros bípedes.
O problema é que o modelo dominante de educação não contempla as ideias de Paulo Freire, nem de nenhum pedagogo semelhante, muito pelo contrário. A lógica tecnocrática e mercantil que se observa no mundo tecnológico, também se evidencia nas instituições de ensino. A prioridade é dada à eficiência, à produtividade e ao rendimento económico em detrimento da formação integral da pessoa. Por consequência, os estudantes são vistos muitas vezes como recipientes a serem preenchidos com dados, fórmulas e procedimentos, sem espaço para educar a afetividade, a criatividade ou o pensamento critico. Forma-se gente competente, sim, mas desconectada da sua própria humanidade. De que nos vale profissionais altamente competentes sem um pingo de humanidade? Para que serve saber muito sobre química se depois esses indivíduos não sabem distinguir entre o bem e o mal? Poderá, inclusive, ser a fórmula para o desastre. Com a crescente desvalorização das humanidades nos currículos escolares e nas universidades, o problema tem-se agravado cada vez mais. De novo, em nome do progresso económico, tem-se dado primazia às áreas técnicas e científicas, enquanto as humanidades são vistas como algo acessório, quase inútil. Mas é precisamente nelas, na filosofia, na literatura, na arte, que encontramos os instrumentos para pensar criticamente, para compreender o “eu” e o “outro” e para resistir aos poderes estabelecidos quando injustos. A filósofa norte americana Martha Nussbaum em Not for Profit: Why Democracy needs the humanities (2010) alerta para esta crise silenciosa, que ameaça transformar as futuras gerações em “máquinas humanas”: úteis para o mercado, mas incapazes de participar plenamente na democracia. Fruto do abandono da imaginação, do pensamento crítico e da sensibilidade. Em nome da utilidade imediata a humanidade caminha em direção a um vazio existencial.
A filosofia, por exemplo, não é um luxo intelectual como muitos pensam, mas uma necessidade humana. Não existe disciplina que substitua a filosofia na sua capacidade de despertar o espanto, fomentar o questionamento e fortalecer o pensamento livre.

Além disso, não se pode pensar numa educação completa sem falar na dimensão estética da mesma. Para resgatar a nossa verdadeira humanidade, também devemos educar os afetos. Friedrich Schiller (1759-1805), no séc. XVIII, deu à luz uma ideia que revolucionou a forma como o mundo olhara para a educação nos tempos subsequentes. No seu tempo, com a educação tradicional a ser caraterizada pela razão, Schiller identificou que a educação deveria contemplar tanto a razão como os afetos. O individuo do seu tempo, alvo de negligência por parte das instituições e da sociedade, fortaleceu o número de subjetividades desequilibradas. Algumas dessas foram até responsáveis por atos de grande violência contra a humanidade, alegando agir em nome da razão. Portanto, Schiller reparou que havia uma grande falha na forma como se educava a gente do seu tempo e em conformidade, propôs o cultivo do senso estético em harmonia com o cultivo da razão. Pensar bem é relevante, mas há que também educar os afetos. Sem essa formação sensível, a razão corre o risco de se tornar fria, mecânica e desumana. Para Schiller, é através da experiência estética, através da arte, da beleza, da contemplação, que o ser humano se torna verdadeiramente livre e desenvolve a capacidade de julgar, sentir e agir de forma equilibrada. Esta visão contrasta profundamente com os modelos educacionais contemporâneos, frequentemente centrados na produtividade, na técnica e na eficiência. Repare-se, como destaca Artur Manso em Educação estética. O belo como manifestação do bem (2023), a educação estética não é sobre saber pintar um quadro ou tocar um instrumento, trata, sim, de desenvolver a sensibilidade, a escuta interior, a capacidade de apreciar e refletir sobre a beleza do mundo, algo que tem sido cada vez mais descurado em nome da utilidade prática e que tanta falta faz à humanidade de cada um. As escolas e as universidades, ao privilegiar o fazer e o saber técnico, negligenciam o sentir. E com isso, cria-se um fosso entre razão e afetividade, entre conhecimento e vida, no desconhecimento de que para formar cidadãos plenos, é necessário integrar todas estas dimensões na educação.
A educação do futuro, se quiser ser realmente transformadora, precisa de recuperar o espaço da fruição, da contemplação e da criação livre comumente defendida pelo filósofo e pedagogo Agostinho da Silva (1906-1994), afirmando numa das suas Conversas Vadias que em 1990 enriqueciam o programa cultural televisivo nacional, que “o ser humano não nasceu para trabalhar, mas para criar”.
Tudo isto leva-nos a uma ideia simples: educar é, antes de tudo, um ato de humanização, o que implica formar pessoas livres, sensíveis e conscientes, não apenas úteis. É esta a missão mais urgente que nos cabe a nós como educadores, mas também como cidadãos ativos nas comunidades democráticas.
O futuro da educação dependerá da nossa capacidade de resistir às forças que a querem reduzir a uma simples ferramenta de produção e adaptação social. Precisamos de escolas e universidades que nos preparem para o mercado e que cultivem a interioridade, a sensibilidade e o pensamento critico: instituições escolares que ensinem a duvidar, a imaginar, a escutar e a sentir, em vez de apenas ensinarem a repetir, obedecer e executar. Se o intuito é formar pessoas verdadeiramente livres, precisamos de devolver à educação o seu sentido mais pleno: o de um caminho ético, estético e político de transformação do sujeito e da sociedade. O resto é espetáculo. Se não formos críticos e vigilantes, perderemos o mais precioso dos instrumentos humanos: a capacidade de pensar e de agir com liberdade e autonomia.
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João Vidal, nascido no Minho em 1995, curioso por natureza. Segue atrás das perguntas que ainda não têm resposta e que podem tornar o mundo um lugar melhor para todos. Licenciado em Filosofia e Mestre no ensino dessa mesma arte de perguntar, tem-se dedicado a pensar o mundo à luz da tecnologia, da ética, da política e da educação, com os olhos postos naquilo que nos torna verdadeiramente humanos.


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