UM ROMANCE NAS NÓDOAS DA MISÉRIA (4) – por Lúcio Valium –

INVERNIAS

Enquanto corre o teu banho quente
as gaivotas fazem círculos demorados no azul
e ouve-se um saxofone desvairado.
Há pouco falavas da neve e de hospitais
desta luz invernal e de arroz.
Dei-te a manta
e compus as roupas da jangada.
Agora falas do cenário que avistamos da janela.
Um frágil amarelo a escorrer entre a
lã imensa de chumbo fumegante
que se eleva para lá dos telhados
por cima do mar.
Já quase noite
vestes o corpo de calças.
Na cozinha falas de aviões
e polémicas publicitárias.
E da tua cidade nas palavras da pobre jornalista
que serve a encenação enquanto
cortas o alho para a panela.
Depois vens ao corredor escuro
contar uma cena de estrangeiros no restaurante
por causa das línguas e dos lucros.
Os gestos e as atitudes.
E já tens os crepes de legumes prontos.
É hora de sair e dizes
que há pessoas que viajam ao passado
e continuas a falar sozinha na cozinha.
Perguntas se há hora marcada.
Ainda temos de ir comprar um salpicão
e vinho
Mas antes tens que secar o cabelo.

ARAMES

Ando por aqui lentamente como uma natureza morta. Com os mecanismos interiores inundados de ácido. Sufocado e disperso. Tomei pastilhas para as sinapses e agora pesam-me os braços. Fecharia de bom grado os olhos. Talvez no quarto o nariz estanque. De resto um dos circuitos está em delírio. Ocorrem derivas semânticas e visitam-me imagens da mesa de madeira dos candeeiros das tuas saias. Deixo a secretária do gabinete e espera-me ainda uma sessão. Arrastarei para lá as ossadas sem alma. Amanhã não irei de viagem. Fico na hospedaria os próximos dias. A olhar pela janela nocturna os nossos tempos na Terra.
Deslizando na jangada a teu lado.

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VOZES

As formalidades e os procedimentos aqui instituídos põem qualquer um em estado crítico. Querem-nos ansiosos e gastos. Derrotados. Cumpridores de objectivos. Emanados de cima dizem as mentes hierárquicas. Cretinas puras. Mas não me têm debaixo da pata infame. Para além de estratégias para roubar tempo uso vários tipos de fármaco-sonias. E cápsulas para dentro como balas psíquicas. Fervem também flores para doces acalmias. Sussurram vozes íntimas enquanto as veias desenham fórmulas químicas para a evasão. Agora refugio-me num consultório perto da direcção. Sonho-te dormindo e visito as palavras de um homem do mundo. As suas histórias.
Noites inclementes nos têm visitado. Parecem querer tingir de sangue a travessia das delícias. Como um diabo que deseja a todo o custo espetar as nossas danças. Ficará mirolho o canalha. Responderemos com desvios e levezas.
Antídoto contra pragas imberbes.
Terminam as sessões e desapareço. Vou enroscar-me em ti no quente das mantas.

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mapa cerebral

PSICOGRAFIAS

Os grandes pensamentos começam anos antes. E amanhecem um dia com traços mais fundos. Entontecem os hospedeiros durante tempos. Doentes e festivos os dias são infiltrados por essências analgésicas. Mas a gramática invisível continua a golpear a geografia íntima. Até que um dia se inverte a matemática. É duro o caminho até à fórmula mas a visão do invento já se pavoneia no caderno do argumentista. Sabemos das erupções que ocorrem na sala mental. Caminharemos sob as árvores e pintarei os teus olhos. Não haverá garras a esventrar a quietude da jangada ou a mesa que cresce nos meus olhos.
Um teorema de tempo é lâmina na carótida. A música do relógio lunar.
Por enquanto transportaremos o enigma no cenário dos servos. Mas sabemos que um perfume inquietante arde ao longe.

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TROCAS

Disse que vinha fazer um trabalho de carpintaria no armazém dos materiais. Escolhi a música e comecei a tratar de assuntos. Estratégia e pesquisa sobre formas de engendrar bocados de real. Os jovens pacientes desta secção ficaram entregues a si próprios. Falam de abstracções enquanto os sons fogem. Procuram analogias e definições. Vou alterando as ambiências sónicas no espaço sombrio. Apesar de medicado mantenho a busca. Três dos recém-chegados destacam-se na atitude.  Ouvem-se algumas frases pertinentes. Muitos estão só virados para eles mesmos. Desenham-se traços dos futuros actores da cena quotidiana. De um modo geral vivem aqui uma curta liberdade. Imitam os modelos que consomem. Não aproveitam para inventar o voo. Já as asas lhes pesam. Muito poucos irão conseguir exercitá-las sem freio. Manejo os dedos para retirar peças do instante. Eles entram na outra parte do túnel. Não sabem o que pensar do ser com quem partilham a tarde. A curiosidade pelo outro não os faz mover. Há uma inquietação viciada consumista e intriguista. Não os preocupa a descoberta ou o encontro. Depois partem em algazarra. Eu desligo o aparelho e saio para a chuva. Sonora e poética.
Em meu sentir.

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DESTERRO

Este real é um inverso. Aqui temos anestesia e destempo. As amarras são tratamentos impostos. Vou raspar-me logo que possa. Estou numa carruagem deserta com sons mentais. Ouvem-se gritos nos pátios. Vêem-se pessoas de bata. Todos prisioneiros de repetitivas imposições assassinas. Vejo as brancas muralhas e desejo que a fúria me leve. Isto é um antro de anomalias. Uma fábrica de vazio. Calo-me e ando. Por vezes escorrego. Noutras barafusto. Nada interessa.
Tudo é um muro. Fico a ler algum tempo. Depois sigo por uma passagem pouco frequentada. Vou para o cubículo abandonado onde costumo fazer pequenas esculturas. E encontro-te. No som das águas do vento deitada no musgo.
Com a tua roupa desenhada pelos imprevistos colada à pele.
Já de noite esgueiro-me por ruas mal iluminadas.

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PSIQUISMOS

A instituição é uma plataforma de deficiências. Deslizam os corpos como objectos sem significado. Vejo-o por vezes com enorme dor. Sofro mais porque a medicação não está a resultar. As partículas gastam-se sem serenar as ondulações. Uma falha psíquica acende os olhos. E o corpo viaja sem descanso. Na fuga do sono voam fantasmas tiranos. E uma outra guerrilha me consome.
Mas no segredo da noite celebro também a magia das mãos. Tocam pétalas e fogo. As delícias do teu corpo embebedam os ramos neuronais. Reavivam líquidos medicinais. Colam rasgos com pomada de algas.
O totem tem pedra quente e candeeiros Oleg.
E a jangada voa na chuva negra.

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ALERGIAS

Andam pimentas pelos ares. Invadem os canais inflamados. Arde o vidrovisual e estalam as paredes craniais. Sou um invólucro de vermes encerrado no gabinete.
Entre máquinas memoriadas. Talvez um ponche a ferver acalmasse.
O escuro e a lentidão de lençóis. A jangada parada dentro do alpendre e uma suave chuva morna. O cheiro a café vindo da cabana. As tuas mãos nos cabelos.
Hoje é outra vez o tempo das demências desumanas. O divino assassino e o político predador esventram a vida dos homens. Um mercantilismo aniquilador e uma economia mortífera proliferam. Devoram cérebros e corações.
E ainda que nos queiram aniquilar é também o tempo de candeias e afectos.
Dos dias largos como mantas. E do sol verde a pintar a mesa. É o tempo das nossas vozes nocturnas. De partir pela manhã sem tempo. De usar a navalha nos montes. De ver as tuas pernas à beira dos lagos.

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Lúcio Valium – Um ser em desvio, sem lugar! Um homem vivo, em desordem! Um forasteiro que nos caminhos encontrou palavras e perdeu moradas!