METRO MEDIDA* – por Lua Nê

 

Vê? Que tudo virou medida. Esses números que a gente regurgitava. Que engolimos, fazendo hematomas por nós adentro. Uma semana. Que virava duas e três. Um morto que nunca era um, era nome, era gente, eram cinquenta mil. Eram cem. Cem mil nomes. Sem mil nomes. E quatrocentos mil. Mais sem. Aquela espécie de virose que medo mete. Sentir-se em contradição, o tempo todo tempo, tempo cem tempo. O que cabia num tempo não era um, era cem, era sem, juro. Tempo sem tempo dentro. Os cômodos, incômodo. Ficava. Eu medindo a aflição crescer pelos batentes da porta de um em um mês. Tanto que crescia, pegava lápis pra escrever, assim, como mãe que acompanha a mania de grama que criança tem. Minha aflição pôs-se pra mato. De um em um metro. E aquilo era auto distância.

Os batentes, de marcar com lápis aflição em metro, não bastaram. Comecei a medir nas paredes. Tanto que crescia, pegava lápis. Media. Anoitece e aquela rua quieta de contradição. Gente morre. A casa afundando de tanta medida. Gente trabalha. Comecei a medir pelos talheres; três facas de aflição. Onze colheres. Vinte garfadas fundas. Comecei a medir nas estantes. Bastam agora três prateleiras. Medi em líquido, água de banho, vinho, suor, gozo, lágrima, menstruação. Meti na privada pra dar descarga: entupiu. Contava, de tudo que era forma. A casa virou aflição, percebi. O endereço parecia que não existia, que ninguém, chegava. A rua mudou de nome, porque a casa era outra coisa. Era outra coisa. Um metro de outra coisa. Um metro, sempre, de distância. De você. De quem morre. De você quem morreu. 

Era isso:  uma criança de cinco anos tem aproximadamente um metro. Como manter cinco anos de distância, não sei. Cinco anos de distância de mim, eu fui ficando, já que acabou a casa e fiquei a medir-me em aflição. Por um assento ou por um acento que esse um metro não vira o metrô que eu pegava pra ir te ver. Pensava, num delírio, se todo acaso andava por quarentenar-se. Em que cadê que estava acaso? Nos assentos das palavras, no colo do metrô. Porque o metro não dava colo, era longe. Metro de medida assim foi uma ingratidão danada a todo sentir dumas peles. O acaso quarentenado. Percebe? Porra.

Escrevo:

O amor atravessou a rua e só hoje é a décima vez que isso me ocorre. Só hoje penteei três pensamentos duas mil e vinte vezes na cabeça. “Duas mil e vinte vezes” não só soa extenso como é.  Março soa breve e tem se prolongado: as palavras se contradizem. Eu, no contradito silábico, penso arrastadamente no vulto de amor que compôs a travessia de calçadas em demasia de mistérios…

Que agonia. Agoniado que os acasos ficam sérios.

Isso ainda que acaso podia quarentenar. A classe média tem acaso e se apaixona pelas janelas. O resto tem sorte ou herança. Esperando que acabe. Tirando a aflição do corpo com balde. Vendo a casa, toda, sem conseguir me medir. Abrigar brigando. E agradecer, com a gola alta de ódio, medo, angústia. Agradecer. Com a casa acesa de morte televisionada. Sem nome. Pagar o salário com máscara. Medir boleto na conta dos palitos de dente. Passar cândida no box pra ver se sai essa tristeza do piso e contar altura dessa mancha. Tocar mãe de luva. Marcar aflição pela casa. Medir. Medir, dois minutos a mais, 20:20 e dois.

 

*Este conto foi extraído do livro O ARROZ É O MAIOR LUGAR DA CASA, de Lua Né.

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Lua Nê atriz, musicista, professora e escritora latinoamericana, Tem seu primeiro conto publicado em 2021 (Editora Unesp) e sua primeira obra “O arroz é o maior lugar da casa” em 2022 (Editora Multifoco).