QUEM PORFIA MATA A CAÇA – por Celso Gomes

Entendeu o título? Pois é, essa é a primeira dificuldade entre tantas desse artigo, que visa analisar o romance O Homem Duplicado de José Saramago – único autor em língua portuguesa agraciado com o Nobel de Literatura – no qual é retratada a crise existencial de um professor de história que assistindo ao filme – cujo título é o mesmo desse artigo – subitamente, se reconhece no rosto de um ator coadjuvante, lançando-se à sua procura.

Mas, o que dizer do romance em questão?

Podemos dizer que as singularidades são irredutíveis e, quando um rouba a individualidade do outro, ainda que simbolicamente, ambos perdem a identidade, sem a qual ninguém vive. E ainda, os romances de Saramago retratam uma época de transformações que, para boa parte da humanidade, resultam em mais perdas que ganhos. Em Ensaio sobre a cegueira, a visão é perdida; em A caverna, perde-se o emprego, o que torna impossível a vida em uma sociedade baseada na lógica do consumo; em A Jangada de Pedra, perde-se o continente e navega-se à deriva em busca de solo firme. Poderíamos citar outros romances, mas nos parece suficiente essas citações. No romance em pauta, perde-se a identidade. Segundo o autor da orelha de nossa edição, “mote ficcional para que o autor toque num dos aspectos mais desumanos da sociedade global, que, em sua ânsia uniformizadora, dissolve as singularidades numa cultura pretensamente universal.” Ou seja, estamos diante de um “romance de tese.”

Precipuamente, nos cabe alertar aos nossos leitores: não acreditamos que romances devam provar tese alguma.

Romances são parte da história secreta das nações. Podem até defender um ponto-de-vista ou outro, de forma mediata, mas não se deve torná-los, obrigatoriamente, em teses, inserindo-os nessa luta intestina que ocorre entre as forças políticas que atuam na sociedade, com o risco de ao fazê-lo, perder-se definitivamente a arte de produzi-los. Outro problema que surge, diz respeito ao fato de sua insistência em divulgar teses através de romances pode caminhar para um esgotamento de modelo.

No entanto, pretendemos invadir outro caminho. Apontaremos alguns aspectos do fazer-literário de Saramago para desnudá-lo um pouco diante de nossos leitores. Ou melhor, pretendemos avaliar criticamente as escolhas técnicas do escritor português para que possamos verificar os efeitos pretendidos pelo romance em questão.

Vamos lá, primeiro às advertências. É preciso tomar certos cuidados com Saramago, pois ele em muitas vezes promete uma tese para nos desviar de sua real intenção. Por exemplo, em Ensaio sobre a lucidez, espera-se que o autor faça escolhas lúcidas. Entretanto, o romance carece de lucidez literária, bem como seus personagens e enredo.

Em O homem duplicado, deparamo-nos com algumas escolhas formais que são verdadeiros pedregulhos no caminho árido do leitor. Primeiramente, os blocos narrativos são muito extensos, os parágrafos são quase ou do mesmo tamanho dos capítulos, de três a cinco páginas, o que não deixa ao leitor um tempo para respiração, como em apneia; as descrições, narrações, diálogos e comentários do narrador estão inseridos no texto de forma misturada; as falas dos personagens são separadas por vírgulas, iniciando-se com letra maiúscula, o que causa enorme dificuldade aos não-iniciados em Saramago; a estrutura das frases é longa e sinuosa, com muitas vírgulas. Corre-se o risco de o leitor chegar ao final da frase sem se lembrar como esta começou, tal sua sinuosidade. Em suma, um deserto.

Recomendamos o livro a um amigo, que ainda não havia lido Saramago, e terminamos colocando as advertências que compõem esse artigo, pois ele empacara nos diálogos sem travessões e vozes separadas por vírgulas. Além da reação de estranheza, esse amigo reagiu com tédio à leitura e somente a muito custo chegou ao final do romance. Segundo ele, por pouco o desejo de conhecer a história foi vencido pelo cansaço produzido pelas dificuldades colocadas pelo próprio autor.

Outro aspecto da obra, o escritor busca convencer o leitor sobre a tese de sua obra. Nesse sentido, ele termina interferindo no direito de o leitor descobrir por si mesmo o significado da obra. Já sabemos de antemão, pois o autor não se furtava a dar declarações na imprensa sobre o efeito pretendido. Claro que todo escritor visa provocar efeitos em seus leitores, mas ao explicitá-los de forma tão inequívoca, Saramago extrapolava de sua função criadora, para induzir o leitor acerca da assertiva de suas teses. Em suma, ele buscava reduzir o leitor para que este aceite as conclusões de sua história. Certa feita, ele declarou que se o efeito pretendido pelo romance não fosse atingido, teria fracassado.

Entretanto, apesar de todos esses percalços e ressalvas, atravessado o “saaramago”, há um oásis a espera do leitor persistente e atento. O final do livro é simplesmente surpreendente e ao terminá-lo, percebemos que estamos diante de uma obra-prima, embora as escolhas formais do autor prejudiquem a obra artisticamente. Saramago nos leva a atravessar um deserto que não é tão-somente o seu próprio romance, mas o nosso tempo atual.

Quem porfia mata a caça. Porfiar, segundo o dicionarista Aurélio, possui entre seus vários sentidos, aquele que nos parece mais apropriado ao romance, o de rivalizar. Em O homem duplicado, essa rivalidade aparente está bem explícita: o escritor e seus leitores se rivalizam, bem como seus personagens-títeres. Porém, há uma outra rivalidade intrínseca, entre o ator do filme e o professor de história, que desemboca em nosso mundo real onde se pergunta: há indivíduo onde o individualismo exacerbado dirige nossos anseios?

 

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Celso Gomes da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. É  advogado e pós-graduado em Filosofia. Em 2017 publicou o romance A gruta de Calipso,  pela Editora Macabea.