EDITORIAL- MAMÃE EU QUERO CARNÁ – por Danyel Guerra

‘A Marcha dos Caretos’, de Balbina Mendes

 MAMÃE EU QUERO, MAMÃE EU QUERO CARNÁ

 Mó num pa tropi / Abençoá por Dê/ E boni por naturê/
Mas que  Belê/
Em feverê (em feverê) Tem Carná (tem Carná)

Jorge Ben Jo

1) Tudo Ben, Seu Jorge, mas este feverê não  tem Carná totalmente livre e irrestrito. Pelo segundo ano consecutivo, Momo não está podendo cair na gandaia do jeito que o diabo gosta.

Na sua maioria, os desfiles, os corsos, os bailes, os trotes, as partidas, as tocaias, as provocações apanágio da quadra, apenas esquentam os tamborins.  Muitos foliões vão ter de se contentar em desfilar no Bloco do Eu Sozinho, conforme cantam Los Hermanos. E, recomenda-se, com três máscaras coladas na cara de pau, a da hipocrisia, a da fantasia  e a sanitária.

No país do afroCarnaval, as escolas de samba do Rio de Janeiro, o evento mais mediático da época, apenas vão se exibir no Sambódromo, nos dias  22, 23 e 30 de abril, já a Quaresma se cumpriu. O de Veneza está em cena, perfilhando sua hierática teatralidade, abdicando, todavia, de “eventos de massas”.

No Nordeste Trasmontano português, os faunos caretos vão chocalhar as povoações, assediando as ninfas, com cuidados profiláticos, mãos devidamente assepsiadas. Êmulos de Apolo, centenas de rapazes vão correr atrás das Dafnes, rapaces como sátiros (vide imagem de capa). Festim brincalhão que começa na época natalina.

2) Semelhantes a chaleira de água em ponto de ebulição, os carnavalescos vão ser, de novo, compelidos a segurar a ansiedade, foliando com parcimônia, para, nos próximos meses e/ou anos,  tampa levantada, vapor evolando-se no ar, soltarem a sustida “alegria alegria” de um modo freneticamente efusivo.

À imagem do crente que sujeito a um severo jejum, recebe luz verde para atenuar a provação, uma multidão famélica vai juntar a fome com a vontade de comer. Mais que um Carnaval, promete ser um Carne vale tudo. Porém, Momo não pode ser sôfrego. Pantagruélico, o repasto só deve ser degustado em feverê de 23.

Para comprovar a magnitude desse apetite feroz, suficiente será consultar a sapiente  mestra História. Lendo relatos da Peste Negra, em meados do séc. XIV, fica evidente a voracidade com que as populações se entregavam aos exxxageros mais hedônicos, inclusive os carnais. Afinal, concordando com Georges Bataille, “o erotismo é a aprovação da vida até na morte”.

Consultada a Imprensa de épocas mais contemporâneas, ela nos informará que em 1919, o Rio de Janeiro vibrou com um dos entrudos mais apoteóticos. Milhares e milhares de pessoas saíram da quarentena, se fantasiaram e caíram literalmente na farra. Os cariocas buscavam, em frenesi, exorcisar os fantasmas da  Gripe Espanhola, que fustigou, violenta, a então capital brasileira. Nessa edição inusitada, o Carná ate ganhou um novo protagonista, o Cordão do Bola Preta, que se tornaria lendário.

Uma das modinhas em voga no Carnaval  do ano anterior testemunhava o pavor que paralisava os cidadãos. ”A Espanhola está aí/ A Espanhola está aí/ A coisa não está brincadeira/ Quem tiver medo de morrer não venha/Mais à Penha”.

Nauseados pela profusão de carne morta, os sobreviventes celebraram a carne viva.  “Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados, e por fim, mal enterrados ”, sintetizaria o cronista Nelson Rodrigues.

3) Os súditos mais farristas costumam levar a mal, muito mal, as proibições dos poderes políticos. E capricham, em regra, na desobediência. Em fevereio de 1912, o Brasil cumpria luto pela morte do Barão do Rio Branco. O Governo determinou o adiamento das festas para abril. Contudo, a galera  descumpriu.  Festejou  nas datas protocolares e voltou a festejar em abril. E uma marchinha  espelhou, magistral  a opção pelo desacato : “Com a morte do Barão /tivemos dois Carnavá / Ai que bom, ai que gostoso /Se morresse o Marechá”. Esse “marechá” era o presidente da República, Hermes da Fonseca, autor do despautério.

Indomáveis carnavais, ai que saudades d’ocês. Saudades da Praça Onze, dos desfiles (grátis) das escolas de samba, em que os brancos eram mal-vindos. Saudades das batalhas de serpentinas, de confetes, de lança-perfumes, de pó de mico. Saudades dos blocos de empolgação, do frevo, dos cordões “onde até vai quem já morreu”, da bateria nota 10. Saudades dos enxutos, dos balangandans das bahianas, das cabrochas mexendo com as cadeiras, dos bailes do Monte Líbano ou do Sírio Libanês.

Na minha lembrança está, outrossim, o Carnaval de 1993, em Portugal, afetado pela decisão governamental de não conceder aos funcionários públicos o feriado na Terça-feira Gorda. Revoltados com a gracinha do premier  Aníbal Cavaco Silva, foram muitos os que revidaram, indo trabalhar fantasiados e mascarados.

4) Momo nunca leva desaforo para casa. Com ele é proibido proibir. Seu império instala o tempo de exxxacerbar os sentidos, inebriar os corpos, fortalecer a carne fraca, cometer todos os exxxcessos, para tudo se acabar numa cinzenta quarta-feira.

“Acabar”, entre aspas. Afinal, faz parte do show do séquito do monarca pisar essa linha vermelha e mesmo ultrapassá-la. É nessa quarta que o Bacalhau do Batata, um esfuziante bloco, fervendo de frevo, desce e sobe, imparável, as ladeiras de Olinda (Pernambuco). Quaresma  adentro, empolga-se o tradicional Micareta, nas vizinhanças da Páscoa. Em Portugal, mostrar ser muito pitoresco o Baile da Pinhata. É Carnaval sempre que uma mulher e um homem quiserem ser rainha e rei. Mesmo se o regime for reipublicano.

5) Mais fortes quereres se impõem, mais altos poderes se alevantam, todavia. Atuando em duo, a Televisão e o Turismo  têm investido, no último meio século, no aviltamento, degeneração e até dizimação da biodiversidade do Carnaval  planetário. No Brasil, a TV industrializou o desfile das escolas de samba num espetáculo  faustoso, confinando-o a um espaço fechado, subtraindo-lhe a espontaneidade inata e a popularidade original.

Em Portugal, as reinações têm sido minadas por uma abrasileirização postiça do genuíno Entrudo autóctone. Deploro, em especial, as escolas de samba, uma espécie invasora por muito que nascidas localmente.

Estimemos que o Entrudo Chocalheiro resista, imune, à essas empatias espúrias e se mantenha fiel à sua autenticidade etnológica, repudiando o abastardamento da matriz artesanal, virtudes bem plasmadas nas telas de Balbina Mendes.

6) Mamãe eu quero carnavalizar também nas praças da apoteose da escrita (uma delas é, de certeza, a ‘Athena’)!  Que este Entrudo a meio-gás possa inspirar as mulheres e os homens de letras a atirarem serpentinas, confetes, pó de mico, a lançarem perfume em cima da sisuda, da lânguida, da malemolente literatura. Uma carnavalização que não seja somente bakhtiniana, ousando se encenar em todas as estações e apeadeiros do ano literário. Como lembrava aquela filosofia de para-choque de caminhão, “não leve a vida muito à sério. Afinal, você não vai sair vivo dela”.

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Danyel Guerra (aka Dannj Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História pela FLUP. E tem-se dedicado ao estudo da História do Cinema. Após ter lecionado História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como repórter e redator efetivo (Carteira Profissional nº 803) nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. É colaborador regular da Revista Athena.