OS AÇORES E AS FESTAS DO ESPIRITO SANTO – por Fernando Martinho Guimarães

Tradição significa «passar adiante», «entregar». Neste sentido, a tradição, costumes, símbolos, memórias, hábitos, cerimónias, festas, é aquilo que passa de geração em geração.

O conjunto dos bens culturais que constituem a tradição de um grupo, de um povo, assegura a sua permanência, a continuidade de uma identidade social e cultural.

Ora, a tradição que melhor define a identidade cultural dos açorianos é, sem margem para dúvidas, as Festas do Espírito Santo. Por todas as ilhas e em todas as freguesias, até ao 7º Domingo depois da Páscoa, o povo dos Açores actualiza um ritual que tem as suas origens na baixa Idade Média.

Sob a égide da pomba do Espírito Santo, cujo esvoaçar é imprevisível como os caminhos da liberdade, as irmandades, com os seus mordomos, organizam, idealmente sem tutelas de autoridades estranhas à vivência estritamente popular, um conjunto de cerimónias que vão da coroação de um imperador, rei ou juiz, na figura de uma criança, até à partilha comunitária do bodo, das sopas do Espírito Santo.

São duas as narrativas mais conhecidas sobre o culto do Espírito Santo e a origem das Festas que, não se excluindo, parecem cruzar-se no tempo e no modo.

Uma, atribui a sua origem à iniciativa da Rainha Santa Isabel, esposa do Rei D. Dinis, que, em 1323, teria patrocinado a primeira festa do Espírito Santo realizada no convento dos Franciscanos em Alenquer.

Outra, proposta pelo historiador Jaime Cortesão, defende o papel essencial desempenhado pelos franciscanos na difusão das festas em Portugal. Em particular, dos chamados franciscanos espirituais, que teriam sofrido grande influência dos escritos profético-messiânicos do abade italiano Joaquim de Fiore, que viveu no século XII.

O suposto milenarismo de Joaquim de Fiore assenta na cronologia das três idades, a do Pai, que representaria o poder absoluto, a do Filho, que se identifica com a revelação da sabedoria divina manifesta no Novo Testamento e, por último, a idade do advento do Espírito Santo, um tempo de igualdade entre os homens e de triunfo do espírito sobre a matéria, da liberdade sobre a necessidade, da errância da pomba sobre os espartilhos das leis da natureza e da sociedade.

Agostinho da Silva, um dos maiores pensadores portugueses, filósofo, poeta e grande comunicador, falecido em 1994, identifica três traços essenciais nas festas do Espírito Santo: a coroação do imperador menino, o bodo e a libertação dos presos por ocasião das festas.

É certo que nem todos estes traços permanecem na sua genuinidade e espontaneidade, mas a iniciativa popular insiste em manter o essencial – a partilha comunitária presente na abundância do bodo e das sopas do Espírito Santo e a ideia de que devem ser as crianças a governar o mundo, um império que, por ainda não ser, pode vir a ser.

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.