PARA UM ELOGIO DA TRISTEZA – por Fernando Martinho Guimarães

Fotografia de Luís Guerra e Paz

Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe.

Depois da festa, sobram as cinzas, quer dizer, à exuberância carnavalesca sucede-se a míngua expiadora do jejum.

O carnaval são três dias mas, admitam comigo, ao terceiro dia ansiamos o regresso à normalidade, isto é, o regresso da tristeza.

Não há festa nem festança em que não apareça a Constança. Chamados à realidade, constatamos que nem a Constança apareceu, nem a festança foi tão boa como julgávamos.

Tanta alegria cansa. Com a tristeza sabemos, pelo menos, com o que contamos. Nunca a tristeza desiludiu alguém e a única coisa que devemos lamentar é de perdermos uma oportunidade de ficarmos tristes. É que há qualquer coisa de ofensivo num espírito bem-disposto. Há uma discordância com o mundo, uma falha, qualquer coisa que não bate certo. Por isso, guardamos no calendário três dias para a alegria. Mais de três dias e matar-nos-íamos uns aos outros. Seria um alegricídio. Uma overdose de boa disposição indispõe qualquer um, cansa e obriga-nos a despender energias que sabemos que nos vão fazer falta.

A tristeza exige tempo e modo. Muitos dias não fazem uma vida e, quando o caso é sério, é sempre melhor prepararmo-nos cuidada e sobriamente.

A tristeza quer-se suave, um desespero ligeiramente contido e sóbrio, suportado na certeza de que o que se espera é certo e garantido.

Espinosa, filósofo do séc. XVII e um dos maiores pensadores da humanidade, distinguia entre afectos activos e afectos passivos. Os activos ligam-se à alegria porque resultam de bons encontros e aumentam a nossa potência de ser e de agir. Os passivos ligam-se à tristeza, a um racionamento de bons encontros, a uma existência diminuída.

Com este racionalismo libertador estaria de acordo, certamente, o nosso Padre António Vieira, se não se tivesse dado o caso de ter de defender o contrário.

Num célebre debate ocorrido em Roma, em 1674, patrocinado pela rainha Cristina da Suécia, pôs-se em confronto o riso e o choro. O riso personificava-o Demócrito; o choro e o pranto, Heraclito. Para determinar qual dos dois filósofos foi mais sábio, calhou a defesa de Heraclito ao Padre António Vieira e a de Demócrito a um outro jesuíta, de nome Jerónimo Cataneo.

Da contenda não se sabe quem saiu vencedor, mas é inevitável sermos tomados por um sorriso suavemente triste de quem confessa uma coisa e diz outra.

Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias. Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias. Logo, maior razão tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.