Não sei se é uma memória real ou se é uma memória construída. Tenho a ideia de ter visto um documentário há já algum tempo em que Umberto Eco, filósofo e romancista, fazia uma visita guiada à sua biblioteca. A jornalista perguntou-lhe, se bem me lembro, de que falava aquela imensidão de livros. O autor de O Nome da Rosa respondeu-lhe que falavam de erros, enganos e mentiras.
E, acrescentou, isso é que fazia da sua biblioteca, de qualquer biblioteca, aliás, uma coisa interessante.
Não garanto que os dizeres tenham sido estes, mas agrada-me pensar que o foram. Afinal de contas, saber identificar e reconhecer o erro, o engano e a mentira é, ainda, a melhor forma de saber onde está a verdade ou, pelo menos, de saber se dela estamos próximos ou distantes.
Vem isto a respeito de um conjunto de crenças e práticas que se têm vindo a instalar em muitas sociedades por esse mundo fora e, é claro, na nossa também.
Uma dessas crenças é a da Teoria da Terra Plana. Existe mesmo uma Sociedade da Terra Plana, uma associação criada em 2004 nos EUA, tinha que ser. A Terra é um disco, uma panqueca. Basta olhar para o horizonte para se ver que não há nenhuma curva. E, além disso, a sucessão do dia e da noite mostra que – só não vê quem não quer ver -, estando a Terra no centro do Universo, o Sol, ao circundar a planura da terra, causa o dia e a noite.
Além disso, o limite da Terra está murado – é a obsessão dos muros! –, por uma muralha de gelo. A melhor prova é o facto de a Antárctida estar protegida por um acordo internacional que impede a sua ocupação, a não ser para investigação científica. A razão é simples, os mais de 53 países que subscreveram o Tratado da Antárctida querem manter-nos na ignorância fazendo-nos crer que a Terra é redonda.
Por outro lado, temos ainda os partidários da Teoria da Terra Antiga e os da Terra Nova. Aqueles são mais alinhados com a teoria científica da origem do Universo e da Terra. Insistem, no entanto que, do Universo aos seres vivos, tudo resulta da criação divina. Os da Teoria da Terra Nova têm como referência uma suposta cronologia bíblica e afirmam que o Universo tem entre 6 mil a 10 mil anos. É mesmo possível, afirmam, datar a criação do mundo – 23 de Outubro, 4000 anos antes de Cristo, um Domingo. A 10 de Novembro deu-se a expulsão do Paraíso.
Os anos 60 do século passado deram-nos muitas coisas. Deram-nos a música rock e a chegada do homem à Lua. Deram-nos o Concílio do Vaticano II do Papa João 23 e o Maio de 69 em Paris. E deram-nos também o movimento New Age, a Nova Era. Conhecemos muito bem este movimento porque os seus seguidores tinham uma flor no cabelo e iam todos para São Francisco.
Tudo no Universo está ligado e tudo é espírito. Como é fácil de ver, é no ser humano que melhor se concentra a energia do espírito cósmico. Para despertar essa espiritualidade que o Cosmos possui, temos um conjunto de ferramentas, também elas carregadas de espiritualidade homeopática – o tarô e as chacras, os mapas astrais e o Reiki, as terapias alternativas e as pulseiras do equilíbrio, as danças em volta das pedras de Stonehenge e o abraço extremoso das árvores. Tudo isto são aberturas para mundos, factos e modos de vida alternativos. Imagino que não seja fácil viver com tamanha espiritualidade.
Não admira, pois, que o gato que tenho cá em casa, herdeiro de uma longa linhagem que viveu e sofreu na pele as consequências da crendice e da superstição, tenha para comigo, representante da espécie humana, uma atenção misturada de suave desprezo e extrema benevolência.
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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugueses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidido sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Galegas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).
Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.
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