Jannowitzbrücke – por Viviane Santana Paulo

começo com este nada de hoje vibrando mediocridade 

latente e late

pulsando o sangue gelado e cinza   das coisas cansativas

que me cingem        quase dípteros reverberantes  

as folhas das árvores nas calçadas estão manchadas de fungo

passo indiferente como sempre faço

a indiferença é uma estratégia   escudo e arma  

às vezes asfixia  pode-se matar ou morrer de indiferença   

ela furta a vida e também a usamos para sobreviver   

enquanto vou descobrindo

que as tempestades   os redemoinhos

nas poças d’água nada mais são do que

a normalidade descalça

trasbordando conflitos mínimos cotidianos

procuro alguma distração   é vital adquirir um desvio  

imprevisível no meio das nuvens  

no feixe das calhas     entre os dedos das mãos

ninguém pode ser você no derradeiro momento

em que você precisa ser outro   

procuro me distrair   mas a única coisa que encontrei

foi uma fotografia tua na internet    um vínculo afastado  

e a má qualidade do pixel

uma difusa alusão à tua boca fechada    não tenho

outro morango   me contento em olhar os teus olhos

pequenos na foto   não tenho outro morango   aliás

na televisão aquele peixe que caiu nas mãos do eslavo

no documentário sobre escritores e Halldór Laxness

teve o coração arrancado das brânquias e ainda

continuou pulsando

parecia um morango vivo     por isso penso que o morango

pode ser um coração

morto   desligado   mole e adocicado   adorado pelo mofo

a sua boca fechada não altera a invariabilidade da saudade

“Steck ihm die Zunge in den Mund und lang”

a minha saudade de querer enfiar a minha língua na tua boca

não jure como os outdoors coloridos   tu não cumpres

com as tuas palavras no e-mail   quando diz querer me ver

não cumpre  

“Ich sehe dich, wenn auf dem fernen Wege     der Staub

sich hebt”

não irei ao banco hoje farto de contas a pagar

me refugiei nas brumas da lírica

e neste vazio predominante    cultivado

com a urina transparente das sombras   

fui almoçar    atravessei a ponte Jannowitzbrücke

entrei na estação de metrô

no vagão o cheiro de um medingo sujo de fraquezas

invadiu minhas narinas   

tem aqueles que carregam sacolas cheias

de medos e delitos mesclados

com as cores das garrafas vazias e recicláveis     trocadas

por alguns trocados nos supermercados    mudei de lugar     

mesmo porque a indiferença entre mim e ele…  sei me fantasiar  

desde pequena aprendi o valor das lantejoulas  

dos granulados de ametista    dos carnavais intrínsecos

das máscaras de pele    de músculos    de dilatação na pupila         

e o valor das frases de Hamlet  

embora as frases tenham vindo mais tarde 

quando o crepúsculo já era noite

e “viver sempre foi muito perigoso”    é um dia

de vento levantando

os cabelos como as asas negras de um corvo

a procura de gravetos    e encontra restos

de batata frita na calçada  

pode-se construir ninho com restos de batata frita feito palitos?    

no útero de um saquinho  do McDonald’s?   

o vento ameaça as folhas fracas com a forte ladainha cíclica 

ou as instiga à migração   à irremediável partida

passo indiferente como sempre faço

mas foi o que me impediu de sentar a mesa na calçada   

que vomita a balbúrdia do meio dia – intervalo do almoço

para ouvir as pessoas ao lado “modulando sílabas conhecidas

e banais que eram sempre certeza e segurança”

permaneci no recinto interior    na garganta da janela

panorâmica que alimenta meu olhar

de paisagem de árvore, rua e rio   

escuto os sussurros dos meus pensamentos

germinarem                e me lembrei

que os Pirahãs na Amazônia possui um idioma

sem futuro e sem passado

e não conhecem Horácio     não falam

do ontem do amanhã e do hoje do ontem

“Vive  bebe o teu vinho  no curto prazo  no longo   nunca se sabe”

temos muito a aprender com os índios   e os destruímos

aprender pode ser dor     mais do que a espátula

penetrando a clavícula de Siegfried

mais do que a flecha de Paris no calcanhar de Aquiles

sobre a mesa um prato com carne e exílio      quanto mais

nos distanciamos de nós mesmos

mais penetramos a fundo em nosso ser    no interior

da azeitona preta da árvore da vida    tão implacável

como o código do rei Hammurabi

escrito nos nossos ossos envelhecidos    nas articulações

das raízes e nos galhos da História

sobre a mesa um disco de alabastro     assim vim a saber

de Enheduana a sábia sacerdotisa que viveu a trezentos anos

após a criação da escrita na Suméria   minha suave boca de

mel torna-se repentinamente confusa  e ainda não consigo

deixar de procurar a boca tua

são poucos os dias nos quais não atravesso pontes   

deixo tudo preparado

para ter as pontes a meus pés    mesmo as mais longas

pesam na minha bolsa como ancora    como livro

resta a realidade descascada    o gomo gordo de cotidiano

o que não significa imprescindível   mente o amargo

um homem lê o jornal a mesa ao lado da minha  

ele se alimenta da “ewige Wiederkunft”

“Die Ewige Wiederkunft des Gleichen”

do constante retorno dos conflitos humanos    ouroboros

das guerras que produzimos        dentro e fora da gente

longe e perto de nossa consciência   “viver é resolver

problemas”    passo indiferente como sempre faço

quando não atravesso pontes     naufrago    sem nunca afundar

permaneço submersa na calda espessa e viscosa   no xarope

de monotonia cuspido no chão carpetado dos escritórios  

as grades invisíveis me vestem de automatização

não há como escapar    e cair na rede

dos versos

eu teria que decodificar a saída de ao menos sete labirintos

e terminar de construir o inacabado mosaico

no quintal da minha memória

nos corredores do metrô as estações mudam   sem dizer

que o outono trouxe claridade furtada do verão  

mas o vento não nega a verdade

e proclama o esmaecer

trago no peito uma caatinga crepuscular   vista quando

meus olhos vacilam e deixam de forjar o rútilo   você reparou

que o vento é como as ondas marítimas?    movimento

e quietude   ir e voltar   chegada e partida  

as árvores me ensinam embora sempre no mesmo lugar

e peço a conta    

a jaula do escritório me arrasta consigo oito horas diárias

e me atrasei treze minutos

Berlim 2012

♦♦♦

Viviane de Santana Paulo (São Paulo/Brasil), poeta, romancista, tradutora e ensaísta, autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth – Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã (poemas, Multifoco, Rio de Janeiro/RJ, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, Alemanha, 2005), Passeio ao Longo do Reno (poesia, Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de Arges, Romênia. Vive em Berlim.